quinta-feira, 28 de março de 2019

Psicologias do fascismo Aula 2

Psicologias do fascismo
Aula 2
Na aula de hoje, começaremos a leitura de Psicologia das massas e análise do Eu,
escrito em 1921 por Sigmund Freud. Como havia dito anteriormente, a escolha em começar
um curso intitulado “psicologias do fascismo” com esse texto se justifica pelo seu caráter
fundador. O texto de Freud consolida um modelo de abordagem dos fenômenos de massa
que visa descrever, em um movimento sobreposto, o funcionamento social regressivo de
grupos, instituições e os processos de formação do indivíduo moderno. Daí o título peculiar
que articula “psicologia das massas” e “análise do Eu”. Esta articulação permite a Freud
fazer uma verdadeira crítica da psicologia social até então existente que inverte
completamente seus objetos e seu horizonte. Tal crítica nos leva à compreensão das
regressões imanentes a nossa vida institucional. Esse modelo de análise aparecerá, à
posteridade, como profícuo a fim de compreender fenômenos como o fascismo e outras
figuras do totalitarismo. Pois ele permite uma análise no interior da qual democracia liberal
e fascismo estarão em linha de contato, na qual o fascismo será uma latência da democracia
liberal. O que proponho nos nossos próximos encontros é seguir a argumentação freudiana,
apresentando a teses principais de seu livro.
Antes, lembremos como a reflexão política de Freud conhece três obras
fundamentais. Cada uma delas aborda uma dimensão do problema do político e tecem entre
si relações profundas. A primeira é Totem e tabu, livro que visa apresentar uma tese a
respeito dos fundamentos antropológicos do político através do mito do assassinato do pai
da horda primitiva e da produção da culpabilidade e da melancolia como afetos políticos
centrais. A segunda é exatamente Psicologia das massas como sua crítica da psicologia
social e sua centralidade nos processos verticais de identificação, como veremos nas
próximas aulas. Por fim, a última é Moisés e o monoteísmo, com sua maneira peculiar de
fornecer uma crítica aos fundamentos teológico-políticos do poder. Nós iremos ver esta
obra no último módulo de nosso curso.
Freud, leitor de Le Bon
A oposição entre psicologia individual e psicologia social e das massas, que à
primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a
examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige ao ser
humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a
satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições
excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros
indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado
enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual
é também desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente
justificado1.
1 FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14Essa introdução a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma nota
metodológica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se estabelecer
distinções estritas entre psicologia individual e psicologia social. O que só pode significar
que uma clínica da subjetividade será, necessariamente, uma clínica de fenômenos sociais.
Pois não há fato psicológico legível a partir de uma perspectiva solipsista, os modos de
relação a si e a própria constituição de uma noção identitária como o si-mesmo é
dependente destes fenômenos sociais que são: “as relações dos indivíduos aos seus pais,
irmãos e irmãs, a seu objeto de amor, a seu professor e a seu médico”2. Freud chega mesmo
a afirmar que a distinção entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser
situada no interior da psicologia individual, já que não há ato psíquico narcísico, ou seja,
não há amor de si que não se oriente a partir da internalização de uma teleologia das
relações sociais. O que não poderia ser diferente já que identidades individuais são
produções relacionais, as próprias instâncias da vida psíquica são internalizações de
disposições sociais de conduta. Proposições que podem nos levar à interpretação de Etienne
Balibar, para quem: “a própria individualidade é um caso particular da formação de
massa”3.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relações sociais. Neste
sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu tempo pode ser
sintetizada através da noção de abstração. Ao tomar o indivíduo isolado como “membro de
uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou uma instituição”, a psicologia social
passa por cima da estruturação sistêmica dos modos de interação social, ou seja, deste
modo de interação social que vai progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre
mãe e bebê à família, às instituições sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que
implica que experiências primeiras de interação no interior do núcleo familiar servirão de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante não para assumir alguma forma
de familiarismo, mas para insistir na dimensão instauradora do conflito. Pois a família é,
antes de qualquer coisa, um núcleo produtor de conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das configurações
familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz dependência não diz
subsunção simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante tentar compreender a
configuração dos processos de interação social postulando algum princípio abstrato como
“pulsão gregária”, “pulsão social”, “group mind” etc. Devemos compreender como modos
elementares de interação influenciam regimes de aplicação de princípios sociais mais
gerais. Daí porque Freud termina insistindo: “Nossas expectativas são orientadas por duas
possibilidades: que a pulsão social não seja nem originária nem indecomponível e que os
inícios de sua formação possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
exemplo na família”4.
A partir de tais considerações, Freud parte para uma certa revisão de literatura que
ocupará os próximos dois capítulos. Tal revisão começa com o livro de Gustave Le Bon, La
psychologie des foules, editado em 1895. A razão não deve ser procurada apenas no caráter
fundador deste livro que, aos olhos de muitos, aparece como a inauguração da psicologia
social e como a realização clássica dos princípios de uma sociologia das massas de forte
caráter conservador. De fato, Freud encontra uma problemática com a qual ele compartilha,
2 FREUD, Psicologia das massas - introdução
3 BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
4 FREUD, Psicologia das massas - introduçõaembora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em seu livro, Le Bon começa
afirmando:
As massas sempre desempenharam um papel importante na história, mas nunca tão
considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das massas, substituindo a
ação consciente dos indivíduos, representa uma das características da idade atual5.
Esta consciência do advento das massas à cena do político nas democracias modernas,
advento que implica uma política de mobilização capaz de romper com o impéris seguro
das leis e instituições, é o pano de fundo sócio-histórico das reflexões de Le Bon. Todo seu
livro é uma tentativa de compreender o advento das massas enquanto ator político como
uma regressão no sentido psicológico do termo. Daí porque ele insistirá que uma massa
psicológica seria dotada de uma unidade mental resultante do desaparecimento da
personalidade consciente dos indivíduos Le Bon chega a usar a idéia de hipnose para
insistir no caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos no interior da massa.
Freud aceitará tal perspectiva ao afirmar que o comportamento da massa não pode ser visto
como a somatória dos comportamentos individuais:
Devemos explicar o surpreendente fato de que este indivíduo sinta, pense e aja de
uma maneira totalmente distinta daquela que esperávamos desde que entra em uma
multidão de homens (Menschenmenge) que adquiriu a qualidade de uma massa
psicológica6.
Le Bon compreende tal mudança de comportamento como resultante do fato de: que
“nosso atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado sobretudo por
influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de nossos atos, encontram-se
causas sociais ignoradas por nós”7. Tais causas resultantes de sedimentações que compõe
“a alma de um povo” formariam um inconsciente coletivo responsável pela constituição da
unidade mental da massa. Daí a afirmação que a psicologia das massas seria uma
psicologias de processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização”8.
Esta comparação entre comportamento social e hipnose já havia sido abordada por
Gabriel Tarde em um livro que apareceu cinco anos antes que este de Le Bon, As leis da
imitação. Tarde, visto também como um nome importante na constituição da psicologia
social e recuperado recentemente principalmente devido ao interesse de Gilles Deleuze por
sua obra, insistia no papel fundamental da imitação na estruturação do vínculo social: “o ser
social, enquanto social, é por essência imitador. A imitação desempenha nas sociedades um
papel análogo àquele da hereditariedade nos organismos e da ondulação nos corpos
brutos”9. No entanto, esta imitação fundamental para a reprodução do vínculo social seria
um fenômeno, em larga medida, desenvolvido de maneira inconsciente. Daí porque Tarde
irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo”10, como alguém em
5 LE BON, Psychologie des foules, préface
6 FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
7 LE BON, idem, p. 22
8 idem, p. 24
9 TARDE, Les lois de l ́imitation, p. 12
10 idem, p. 84estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos (sonambulismo, hipnose, ação
social) encontramos a ilusão de ter ideias sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da imitação,
Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e de prestígio. Daí
afirmações como:
Foi necessário a fortiori no início de toda sociedade antiga uma grande autoridade
exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e afirmativos. Foi através do
terror e da impostura, como se diz normalmente, que eles reinaram? Não, esta
explicação é claramente insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio11.
A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiração capaz de
sustentar relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a hipnose. Segundo
ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de desejo, imobilizada em
lembranças de toda natureza, adormecidas mas não mortas”12. O hipnotizador será aquele
capaz de, através do seu prestígio, atualizar tal força potencial, atualizar este desejo
imobilizado em lembranças de toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como
sujeito que saber a respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de
aceitar ao dizer: “Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece
querer?”13.Tal relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de prestígio
poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser social”.
Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade é a imitação e a imitação é uma
espécie de sonambulismo”14.
Freud compreenderá fenômenos como a mútua sugestão dos indivíduos e o prestígio
do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando de explicações. E para
tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as relações de autoridade e de coesão
no interior da massa são expressões de vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que
Freud não teme em remeter ao conceito platônico de “Eros”. Mas a respeito de tais
vínculos, Freud dirá:
Todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que nas
relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são
afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam
bastante da sua natureza original, o suficiente para manter sua identidade
reconhecível (abnegação, busca de aproximação)15.
Ou seja, as relações políticas e a constituição das massas são uma questão de atração
libidinal, de amor. Não há relação vertical à autoridade e horizontal aos membros da massa
que não seja constituída a partir da dinâmica das relações amorosas, com sua produção de
objeto de amor e suas modalidades de identificação. Não há sujeição ou submissão sem
amor, é o que lembra Freud. Amor que não desconhece a força de atração dos corpos, a
11 idem, p. 86
12 idem, p. 87
13 idem, p. 97
14 idem, p. 97
15 FREUD; Psicologia das massas, op. cit., p. 43afecção dos corpos e suas modalidades de prazer. Afecção que, mesmo deslocada, tem sua
inteligibilidade nos mecanismos sexuais de procura de prazer e gozo. Há um gozo das
massas e é ele que precisa ser compreendido caso queiramos entender a natureza do
político.
Se voltarmos a Psicologia das massas e análise do Eu, veremos Freud se serve
deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo poderia se livrar dos
recalques de suas moções pulsionais, o que acarretaria a desaparição dos sentimentos de
responsabilidade e da consciência moral. Essa supressão do recalque aproxima os
fenômenos de massa e as formações do inconsciente. Mas ele logo insiste em operar uma
distinção extremamente significativa: o inconsciente de Le Bon, diz Freud, este
inconsciente resultante da sedimentação de heranças arcaicas não é o inconsciente
psicanalítico fundado em operações de recalque:
Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao qual
a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas nós
distinguimos um ‘recalque inconsciente” que é uma parte desta herança. Este
conceito de recalque falta em Le Bon16.
Quer dizer, falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor das
experiências sociais que podem aparecer como herança de experiências históricas. A
verdadeira questão é: quais os conflitos que levam sujeitos a se constituírem em uma massa
que se sustenta através da implementação de exigências libidinais? Esses conflitos
psíquicos, cuja compreensão exige a mobilização dos conflitos inerentes à constituição do
Eu, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de sujeição psíquica,
explicam principalmente a natureza das relações sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud não se interessa pelas dinâmicas revolucionárias, já que os
processos revolucionários são exatamente aqueles nos quais as figuras de autoridade são
depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever Psicologia
das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores, Paul Federn, escrevera
Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais (1919). Neste texto, que Freud
certamente conhecia pois seus argumentos principais foram apresentados na Sociedade das
quarta-feiras, Federn via no fim do Império Austro-Húngaro e na queda da figura do
Imperador, assim como na vitória da Revolução Soviética, a possibilidade do advento de
sujeitos políticos que não seriam mais “sujeitos do Estado autoritário patriarcal”. Para tanto,
tais sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relações fraternas, relações distintas e que
não se derivam completamente da estrutura hierárquica de uma relação com o pai que até
então havia marcado a experiência política de forma hegemônica. Para que novas formas de
identidades coletivas fossem possíveis, não bastaria apenas transmutar a identificação com
o pai em recusa de seu domínio. Seria necessária a existência de um modelo alternativo de
identificações que se daria de maneira horizontal e com forte configuração igualitária. Daí
uma afirmação maior como: “Dorme em nós, igualmente herdada ainda que em uma
intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo princípio social, este da
comunidade fraterna cujo motivo psíquico não está carregado de culpabilidade e temor
16 FREUD, Psicologia das massas, capítulo IIinterior. Seria uma liberação imensa se a revolução atual, que é uma repetição das revoltas
antigas contra o pai, tiver sucesso”17.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relações fraternas poderiam
constituir um “segundo princípio social” relativamente autônomo e não completamente
dedutível das relações verticais entre filhos e pais, inscreve-se no horizonte de reflexões
sobre estruturas institucionais pós-revolucionárias. A partir de tal modelo, Federn tentará
pensar o fundamento libidinal de organizações políticas não-hierárquicas como, por
exemplo, os sovietes e os conselhos operários que procuravam se disseminar na nascente
república austríaca graças às propostas dos social-democratas. A sociedade sem pais a que
Federn alude tem a forma inicial de uma república socialista de conselhos operários.
É fato que Freud não seguirá esta via. Para tanto, seria necessária a defesa de uma
dimensão de relações intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada na reciprocidade
igualitária. Tal dimensão não existe nos escritos de Freud que, neste sentido, estaria mais à
vontade lembrando da agressividade própria às relações fraternas com suas estruturais duais
baseadas em rivalidade. Por isto, as relações de cooperação tipificadas em confrarias ou
comunidades de iguais só podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano,
apoiando-se na exclusão violenta da figura antagônica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revolução bolchevique, Freud pergunta-se
sobre o que os soviéticos farão com sua violência depois de acabarem com seus últimos
burgueses.
Neste sentido, não é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de massa
para Freud não sejam, como poderíamos esperar, eclosões revolucionárias (como a Comuna
de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja: duas instituições que não pareceriam, a
primeira vista, exemplos de regressão social. Pois se trata de afirmar que a lógica da
regressão social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem,
criança, neurótico e que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no
cerne de nossas instituições (e não simplesmente nas força que visam desestabilizá-las). Se
levarmos em conta que estamos a falar de um cidadão do finado Império Austro-Húngaro,
podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder teológico-político da igreja e as
forças armadas é uma maneira metonímica de se referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza constitutiva
das relações verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo freudiano vem da igreja
católica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o general. As relações entre os
membros e o líder constitui uma relação na qual todos estão igualmente distantes do centro,
Por outro lado, é o vínculo libidinal ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do
desaparecimento do líder provocar ou pânico provocado pela anulação das ligações mútuas
ou uma desintegração que libera a violência generalizada contra aquele que aparece como o
outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relação entre identidade e
identificação no interior dos fenômenos sociais. A proposição de Freud se refere a uma tese
sobre o processo de formação de identidades coletivas. Uma identidade coletiva precisa de
uma identificação vertical para se constituir. Ela precisa de uma relação à representação de
soberania. Essa é uma tese forte e polêmica, mas lembremos que tal identificação vertical
não precisa necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
17 FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238ideia, uma representação, uma organização. Mas, para Freud, tais identificações verticais
devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois fenômenos: o
pânico e violência sem direção já que, como lembra Freud, não há religião do amor sem
violência; “Uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser dura e
sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda religião é uma religião
do amor para aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e à intolerância para com os não
seguidores”18. Nesta proposição, está sintetizado o fundamento do antagonismo político
através da consolidação de relações amigo-inimigo. As massas são constituídas como
mecanismos de defesa contra o pânico vindo da angústia da ausência de identificação,
assim como da defesa contra a desintegração da gestão das relações antagonistas entre
amigo e inimigo.
Problemas de imagens
Um outro ponto central que leva Freud a se aproximar de Le Bon enuncia-se na
afirmação: ‘A massa pensa por imagens que se chamam (hervorrufen) por associação, tal
como acontece no homem isolado quando este dá livre curso a sua imaginação”19. Este
pensar por imagens, pensar que segue a lógica da associação com suas regras de
contiguidade e semelhança, pensar que explicaria fenômenos como o contágio social, a
catarse e a sugestão, seria o ponto de partilha entre massa, pensamento selvagem,
pensamento infantil e neurose:
Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados, baseados
em associações: mas as idéias associadas pelas massas tem, entre elas, apenas
ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas encadeiam-se à maneira das
idéias de um Esquimó que, sabendo por experiência que o gelo, corpo transparente,
dissolve na boca, conclui que o vidro, corpo igualmente transparente, deve dissolver
na boca também; ou do selvagem que acredita adquirir a bravura de um inimigo
corajoso ao comer seu coração, ou do operário que, explorado pelo patrão, conclui
que todos os patrões são exploradores20.
Esta noção assume a distinção entre imagem e conceito, entre a abstração própria ao
conceito e a contiguidade indevida das imagens. No entanto, percebemos novamente o
deslocamento operado por Freud em idéias relativamente correntes de sua época. O modo
de pensar que Freud descreve é aquele próprio aos processos primários do inconsciente.
Neste sentido, eles não são arbitrários e vinculados ao erro, mas descrevem processos de
encadeamento de representações absolutamente necessários do ponto de vista da dinâmica
do desejo. Eles permitem a compreensão dos conflitos e desenvolvimentos que dão
inteligibilidade a uma função intencional central como o desejo. Por outro lado, sendo as
massas e as instituições o espaço de desdobramento de processos primários, chega-se
rapidamente à conclusão de que a análise não deverá se basear nas disposições normativas
18 FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
19 idem,
20 LE BON, idem, pp. 44-45imanentes ao horizonte de racionalidade social. Há uma dinâmica inconsciente que deve ser
desvelada e na qual se encontra o verdadeiro fundamento da coesão social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por similitudes
aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios elementares da lógica e do
entendimento. Foucault e Adorno, por razões distintas, insistiram bastante neste ponto:
como a razão moderna impôs à mimesis como figura de um pensar exilado das exigências
de racionalidade do entendimento. Desde o descrédito cartesiano à imaginação, o que tem
afinidade mimética é negado enquanto algo dotado de potência cognitiva. Vale sempre a
pena lembrar que a potência disruptiva da mimesis em sociedades pré-modernas implica na
implementação social de processos de diferenciação que não são solidários da entificação
do princípio de identidade, como é o caso no pensamento próprio ao conceito moderno de
razão.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das teorias de
Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexão sobre a natureza do líder das
massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja
uma pessoa, uma idéia ou instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio ou
carisma. Mas antes de aprofundar a natureza da relação entre indivíduo e líder da massa,
Freud passa à distinção de McDougall entre massas organizadas (group) dotadas de
singularidade e responsáveis por processos de individuação e massas desorganizadas e
efêmeras (crowd) que parecem impedir toda e qualquer individuação. O fato significativo é
que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso paradigmático. Ou seja, de fato, a
tradução inglesa de Strachey não estava totalmente incorreta: o diagnóstico freudiano é
também uma group psychology. O que deixa a crítica freudiana ainda mais próximo de
nossos modos de organização social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen à
psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social, com
especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a possibilidade das
hipóteses fundamentais de Psicologia das massas e análise do eu valerem também para
sociedades democráticas insistindo, no seu caso, na irredutibilidade da norma jurídica à
crença ou amor por uma pessoa ou ideia personificada. Ao acreditar na relação fundamental
entre norma e fantasia, ou antes, ao operar como quem não é capaz de estabelecer
distinções entre norma e fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das
massas e dos “grupos transitórios” fortemente dependentes de móbiles psicológicos para
todo e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud não apenas indicaria a gênese das
ilusões substancialistas que afetam a representação da autoridade do Estado, mostrando
como tais ilusões significariam o retorno de uma mentalidade arcaica a ser combatida por
inviabilizar uma concepção democrática da vida política incapaz de sobreviver ao conflito
particularista das paixões. Neste sentido, a perspectiva freudiana não é eminentemente
crítica, o que para Kelsen seria bem-vindo. Ao contrário, ao insistir em compreender todo e
qualquer vínculo social a partir “dos processos de ligação e associação libidinal” em sua
multiplicidade empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusão tanto para a própria
sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica. De um
lado, Kelson dirá: “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de grupo”21, insistindo
que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o Estado, para o jurista austríaco
21 KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323Não é um dos vários grupos transitórios de extensão e estrutura libidinal variáveis; é
a ideia diretora, que os indivíduos pertencentes aos grupos variáveis colocaram no
lugar de seu ideal de ego, para poderem, por meio dela, identificar-se uns com os
outros. As diferentes combinações ou grupos psíquicos que se formam quando da
realização de uma única ideia de Estado não incluem, de modo algum, todos os
indivíduos que, num sentido inteiramente diverso, pertencem ao Estado. A
concepção inteiramente jurídica do Estado só pode ser entendida na sua
conformidade jurídica específica, mas não psicologicamente, ao contrário dos
processos de ligação e associação libidinal, que são o objeto da psicologia social22.
Ou seja, a existência de uma concepção inteiramente jurídica exigiria uma
universalidade genérica que não pode ser assegurada se creio que todas as instituições
devem necessariamente encontrar seu fundamento em processos de identificação e
investimento libidinal, tal como quer Freud. Pois não haveria identificações universalmente
recorrentes, já que elas dependem das particularidades empíricas das relações familiares em
sua contextualidade especifica.
No entanto, é fato de que, para o psicanalista, a “concepção inteiramente jurídica do
Estado” da qual fala Kelsen seria simplesmente uma hipóstase que nos impediria de
compreender as dinâmicas próprias àquilo que poderíamos chamar de “estrutura
fantasmática da autoridade” em nossas sociedades, a saber, a maneira com que autoridade e
fantasia se articulam, o que nos levará diretamente à teoria do supereu, como veremos na
próxima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura nossa relação
ao lugar soberano do poder em Totem e tabu. Lá, Freud lembrava como tudo se passava
como se sujeitos agissem no interior das relações sociais tendo que carregar o peso da
culpabilidade e da melancolia produzida pelo assassinato de um pai primordial. Os sujeitos
se socializam, eles agem socialmente a partir da culpa e da melancolia. Culpa anterior a
qualquer ação, melancolia vinda do sentimento de perda de um objeto perdido vivida sob a
forma de reprimendas e auto-depreciação. Neste sentido, se Freud se vê obrigado a afirmar
o caráter filogenético de sua fantasia social do pai primevo, é por entender que os vínculos
à ordem jurídica procuram se legitimar através da reiteração retroativa de um modelo de
demanda de autoridade. Tais vínculos não se alimentam apenas da especificidade de
relações familiares, mas assentam-se em outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o
exército, aparelhos mais gerais que incitam continuamente a certas formas de vínculos
libidinais. Com esta crítica, Freud recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento
jurídico para além do Estado, já que se trata de criticar o fundamento fantasmática da
autoridade. De fato, a esfera do direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de
“purificação política dos afetos” através da defesa da validade ideal da norma que só pode
nos levar à crença na imunidade à problematização política do quadro jurídico com seu
22 Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e leituras
“republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo para o exercício
do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a ereção dos cidadãos
que formam o bando político republicano. É claramente a ideia republicana que é aqui objeto de amor
unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem cabeça, sem ‘chefe’ no sentido
freudiano do termo” (BAAS, Bernard; Y a-t-il de psychanalystes sans-culotte?, op. cit., p. 217)ordenamento e seus mecanismos previamente estabelecidos de revisão. a teoria freudiana
da psicologia das massas fornece uma crítica a tal positivismo jurídico.

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