quinta-feira, 28 de março de 2019

Psicologias do fascismo Aula 1

Psicologias do fascismo
Aula 1
Goebbels chega a minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em
duas filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer
a saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o
braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se
assistisse a um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado.
Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis
palavras “Eu não desejo a sua saudação”. Daí vira-se e vai na direção da
porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha própria
fábrica, entre meus próprios trabalhadores, com o braço levantado.
Fisicamente, só posso ficar assim. Então fixo o olhar no pé torto de
Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma
posição até acordar 1 .
Este é o relato de um sonho de um pequeno industrial alemão em 1933,
ano da ascensão de Hitler à chancelaria. Um sonho no qual talvez se encontre
muito da realidade socio-econômica que seria a regra no país a partir de então.
Lá estava a figura do poder que reconstitui a sociedade a partir de novas
posições nas quais todos estão igualmente distantes do centro. O pequeno patrão
agora está ao lado de seus empregados, obrigado a fazer a saudação nazista
como todos. Mas há algo nos corpos que não se adestra muito bem. Os gestos são
feitos com esforço indescritível. Há algo nos corpos que sai de suas imagens
necessárias. O corpo de Goebbels é manco, o do pequeno patrão é exposto em
seu descontrole, em seu esforço para sustentar um gesto simples. “Eu não desejo
sua saudação” é o que diz o ministro da propaganda de Hitler. Esta é uma
maneira de dizer : “seus gestos são vazios, eles denunciam como falta-lhes o
sedimento da identificação”.
Neste sonho, toda uma dimensão libidinal de resistência e conflito
aparece. Por mais que o sujeito procure “fazer como”, há o corpo que resiste, há o
corpo que manca. Quando ele acordar e estiver na realidade socialmente
partilhada levantando o braço para fazer a saudação nazista, o sonho lhe
lembrará deste real. Ele lhe produzirá um sentimento de irrealidade que pode a
qualquer momento expo-lo em sua inverdade. O corpo lhe lembrará do caráter
real de seu próprio desejo e da irrealidade da vida social.
Uma abordagem psicológica de fenômenos sociais é desejável?
Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram não apenas como nossas
formações do inconsciente, nossos sintomas, angústias, desejos e fantasias são
expressões de dimensões fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâmicas imanentes a fenômenos sociais,
1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30como o fascismo, exige a mobilização de uma dimensão propriamente
“psicológica”, mesmo que este termo vá, no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinção específica, até o ponto em que talvez não tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicológico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusão de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizávamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarão atravessados por uma urgente
necessidade de modificação.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questões prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemológica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razão para se propor uma abordagem
psicológica do fascismo?”, até porque não é claro o que entendemos por
“abordagem psicológica” neste caso. A outra questão é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenômeno totalitário historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemônicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, então qual sua especificidade, em que
condições poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questão como a anterior, relativa à abordagem psicológica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Não estaríamos a
produzir um erro categorial primário ao mobilizarmos categorias psicológicas
para descrever fenômenos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interação entre as múltiplas esferas sociais de
valores em prol de descrições sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representações mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reprodução material da vida. Como se,
ao final, as relações sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situação ideal originária na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relações de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressão institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posição de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da análise da
lógica do poder.
Como se não bastasse tal dificuldade epistemológica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
análise psicológicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunção explícita entre:
criminologia, reflexão sociológica sobre o impacto social dos processo de
urbanização na Europa, reflexão política sobre movimentos de massa, além de
considerações sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo não será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja tradução mais
aproximada seria “psicologia das multidões”. Os principais textos são escritos em
um prazo de não mais de quinze anos: Psychologie des foules, de Gustave Le Bon éde 1895. Les lois de l’imitation, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu L’opinion et la foule, de 1901. La folla delinquente, do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussões sobre psicologia das massas alcançarão
o mundo anglo-saxão principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregário (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá: The Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a análise do Eu é de 1921.
Conhecemos análises anteriores a respeito de fenômenos de massa, elas
estão lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e
de Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e
Maupassant. Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi
anteriormente explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada
um a sua maneira, fazer das massas, da multidão, o objeto de uma ciência a parte
inteira, o que não era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da
regressão social, das involuções que estariam a ameaçar as novas sociedades
capitalistas urbanas do século XIX. Assumindo uma noção bastante presente na
psicologia de então, que definia a doença mental como degenerescência, como
retorno a estágios arcaicos de maturação e desenvolvimento, esses trabalhos
(embora os trabalhos de Tarde sejam uma exceção a este caso) veem as massas
como o equivalente social de uma degenerescência patológica, propícia a
comportamentos criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reações
violentas e incontroláveis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
história, mas nunca tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das
massas, substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual” 2 . Pois não seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidões (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensão do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das nações.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período
de “anarquia confusa precedendo a eclosão de novas sociedades”, período
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva” 3
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo” 4 ,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
LE BON, Psychologie des foules, préface
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
2
3Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido
psicológico do termo. Regressão a uma sociedade ingovernável, já que não seria
possível governar as massas. No máximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria não ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós” 5 . Tais causas
resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsável pela constituição da unidade mental
da massa. Daí a afirmação de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização” 6 .
Se nos perguntarmos pelas condições históricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará história
posteriormente:
Hoje, as reivindicações das multidões são cada vez mais claras e visam
destruir de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse
comunismo primitivo que foi o estado normal de todos os grupos
humanos antes da aurora da civilização 7 .
O que não poderia ser diferente, já que as condições históricas para o
aparecimento de tal psicologia não é outra que as experiências revolucionárias
que sacudiram a França do século XIX, em especial a Comuna de Paris, de 1871,
com sua insubmissão das classes populares às representações de ordem e
autoridade. Isto explica um pouco da razão pela qual foi na França que a
psicologia das massas acabou por aparecer inicialmente. Foram três revoluções
populares em menos de um século (1789, 1848, 1871). Diante da subida à cena
da história de revoluções de massa nas quais a natureza do poder era contestada,
a psicologia será mobilizada para construir um discurso social com pretensões
científicas no qual o corpo social era apresentado como em risco de
degenerescência, como tais fenômenos seriam explosões patológicas de
irracionalidade.
Certamente, devido a sua origem claramente reativa aos processos
históricos de transformação social, a psicologia das massas acabaria por ser
relegada à condição de curiosidade histórica se ela não tivesse sido
completamente invertida por Sigmund Freud, em seu Psicologia das massas e
análise do eu, de 1921. Veremos com mais calma tal inversão no interior de nosso
curso, mas se nosso curso começa com Freud é por ele ter representado uma
espécie de novo começo para a abordagem psicológica dos fenômenos sociais.
Primeiramente, porque não se tratava mais de descrever as regressões que
ameaçariam do exterior a marcha do progresso própria ao processo de
racionalização das sociedades europeias do começo do século XX.
LE BON, idem, p. 22
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
5
6O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressão do primeiro não
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmáticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinção entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode
aparecer nas massas espontâneas de maneira “mais camuflada”. Maneira de
afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituições, isto no sentido de uma psicologia da regressão imanente ao
funcionamento normal de nossas instituições, e não mais psicologia da regressão
que apareceria como desvio em relação ao bom funcionamento normal das
instituições democráticas. Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a
psicologia das massas de Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen 8 .
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituições que aparecem como subsistemas inerentes a toda noção de
democracia liberal seriam a expressão mais evidente de núcleos de regressão
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas não são a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisórios em instituições democrático
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religião triunfará não apenas sobre
a psicanálise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Não podemos sequer
imaginar como é potente, a religião” 9 .
Se, para Freud, a história da democracia no ocidente será uma história de
afastamentos malogrados em relação tanto ao núcleo teológico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierárquicas e militarizadas, se esses núcleos e
figuras conhecerão retornos periódicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepção teológico-política de poder (a secularização de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relação é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicação da noção clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenômenos sociais que colocariam em risco o horizonte de
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará então a análise das latências
de regressão imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicológico de fenômenos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
núcleo teológico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
8
9
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78relações sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos são
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuação se realizam perpetuariam modos de relação social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos são próprios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissão à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna não seria exatamente o esteio de
uma forma democrática de vida baseada na cooperação imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressão
social. E não será por acaso que comportamentos xenófobos, racistas e violentos
não virão necessariamente dos integrantes de famílias em decomposição, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradação, mas
também de famílias aparentemente sólidas, países aparentemente prósperos. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de auto-
crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questão epistemológica inicial, esta que dizia
respeito à adequação de propor uma análise psicológica de fenômenos sociais. O
que vemos aqui é como não seria possível compreender fenômenos sociais, seus
modos de criação de adesão, as modalidades de produção de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilização de fantasmas, de afetos e representações que
não são individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos são individuais. Lembremos do que
diz Freud:
A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas,
que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de
sua agudeza se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das
relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é
também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado mas
inteiramente justificado 10 .
Em uma afirmação desta natureza, fica evidente quão pouco clara são
noções como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo
dotado de realidade ontológica. Se pensamos o ser humano no interior de
relações de desejo, é impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever
estruturas sociais de relação. Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos
são modos de participação social. Podemos mesmo dizer, não são indivíduos que
desejam, mas a sociedade deseja através dos indivíduos. Não são indivíduos que
produzem fantasias, mas a sociedade produz fantasias através dos indivíduos. É
a história dos desejos desejados antes de mim, como disse uma vez Alexandre
Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo meus, nos fantasmas que julgo
10
FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do Eu, São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14meus. Neles, encontram-se tanto a constelação familiar quanto a história dos
povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que se recusou a se
constituir como família, como povo, como raça.
O que é fascismo?
O texto de Freud é de 1921 e seu horizonte histórico é profundamente marcado
pela primeira guerra civil europeia que passou para a história como a Primeira
Guerra Mundial. Ou seja, seu objeto não poderia ser o que aparecerá anos depois
como fascismo. Mas com a ascensão do nazismo em janeiro de 1933 foram
publicados, no mesmo ano, dois textos propondo uma análise psicológica do
fascismo a partir do quadro compreensivo derivado do proposto por Freud. São
eles : A estrutura psicológica do fascismo, de Georges Bataille, e A psicologia de
massa do fascismo, de Wilhelm Reich. Esses dois textos, escritos por autores que
não se conheciam e vindos de tradições distintas, irão inaugurar uma longa série
de trabalhos que procurarão utilizar conceitos clínicos para dar conta tanto do
fascismo como de seus mecanismos imanentes, como o anti-semitismo (muito
mais presente no nazismo alemão do que no fascismo italiano), o totalitarismo, a
concepção orgânica do corpo social com sua forma de vínculo ao território, o
nacionalismo militarista, a concepção imunitária de identidade.
Dois aspectos saltam imediatamente aos olhos na comparação entre esses
dois textos. O primeiro consiste em perceber como eles procuram fornecer uma
teoria libidinal da regressão social. Ou seja, eles procuram defender a tese de que
fenômenos como o fascismo não podem ser explicados se não levamos em conta
a economia libidinal que lhe seria própria. Ele não seria um fenômeno de classe,
de raça, de nação, mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer sentir em
qualquer lugar e momento. Para sermos claros, o que esses textos afirmam é a
existência de algo como um regime fascista do desejo que deveria ser o
verdadeiro alvo de uma ação política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, não procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressão política do retorno a estruturas
arcaicas de comportamento, um pouco como vimos Le Bon a falar da emergência
das massas no campo político. Alguém como Reich, por exemplo, insistirá que
longe da ressurgência de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do
resultado final de um trabalho de civilização que confunde socialização e
repressão pulsional. Pois até agora não houve processo civilizacional que não se
constituiu sobre os escombros das pulsões sexuais, tema também caro a Bataille.
Daí porque é importante lembrar como: “a estruturação autoritária do homem se
produz em primeiro lugar através da ancoragem de inibições e de angústias
sexuais na matéria viva das pulsões sexuais” 11 . Ou seja, tudo se passa como se
eles estivessem a dizer que não é falta de civilização que produz o fascismo, mas
civilização em sua função repressiva bem sucedida e em sua capacidade de
produção de satisfações substitutas à sexualidade reprimida.
Mas essas teorias não funcionarão simplesmente como a figura do que
Foucault chamará décadas depois de “a hipótese repressiva”. Pois elas lembrarão
como o fascismo será incompreensível a partir da hipótese de um regime
repressivo “lei e ordem”. Antes, ele é a mobilização contínua e simultânea da
11
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75transgressão e da repressão. Ele é a articulação entre a suspensão da lei e o culto
da lei. É que visa Reich ao afirmar: “O fascismo não é, como se tende a acreditar,
um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama
de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários” 12 . Bataille dirá
algo semelhante quando afirmar, sobre o fascismo: “a revolução afirmada como
um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a
dominação interna exercida militarmente por milícias” 13 . Há a emergência do que
Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa da homogeneidade da
sociedade utilitária da produção pulsando no interior do fascismo. Mesmo o
vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma incondicionalidade que
se coloca para além de todo julgamento utilitário.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposição política
de que o fascismo só pode crescer em situações pré-revolucionárias. De certa
forma, ele é a figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevolução
preventiva que se faz passar por revolução, e este “se fazer passar por” é o ponto
decisivo aqui. Pois esta é uma forma desses autores afirmarem que o ponto
analítico fundamental passa por compreender por que, em dado momento,
setores majoritários da população desejaram o fascismo. Pois uma teoria que
eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços sociais precisará responder
sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará procurar nele os traços
conjugados de revolta contra a opressão social e reforço da opressão.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clássico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso sobre a
servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da
servidão a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos
se deseja a servidão, por que em certos momentos se deseja esse processo de
concentração radical da soberania na mão de um? Não se trata de descrever a
servidão a partir da submissão à força, mas a partir da sua associação à voluntas,
de um querer e participar à sua própria servidão, e este é o ponto fundamental:
Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas
aldeias, tantas cidades e tantas nações suportem por vezes um único
tirano, que tem o poder que elas mesmas lhe dão; cujo poder de
prejudicá-las é o poder que elas mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes
algum mal porque elas próprias preferem padecer deste mal a
contradizer o tirano 14 .
O segredo será pensar as modalidades através das quais os sujeitos
participam de sua própria servidão, como eles serão, ao mesmo tempo, a vítima e
o carrasco. Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da
estrutura libidinal do fascismo, eles não deixarão de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulação novamente por Reich:
Idem, p. 17
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
12
13Pois como disse Reich, o surpreendente não é que pessoas roubem, que
outros façam greve, mas sim que os famintos não roubem sempre, que os
explorados não façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploração, a humilhação, a escravidão, ao ponto não apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Não, as massas não
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstância, e é isto que se faz necessário compreender 15 .
A resposta de Reich e Bataille passará por insistir que categorias como
opressão, repressão, ameaça não bastam, embora não se trate de ignorar a
presença dos fenômenos que elas descrevem. Há certa liberação que o fascismo
realiza, há certa revolta que ele libera e não será possível compreender sua força
sem analisar sua produção. Entender a natureza dessa produção será um dos
desafios mais complexos.
Quando décadas depois Deleuze e Guattari retornarem aos problemas
internos às psicologias do fascismo e às formas de paralisia à emancipação social,
após a consciência da paralisia das forças de transformação produzidas a partir
de maio de 68, quando eles retornarem em uma via que procura explicitamente
recuperar pontos importantes do pensamento de Reich, eles claramente verão
como estratégia política maior mobilizar a crítica em duas direções: uma macro-
política e outra micro-política. Se a primeira se refere as grandes estruturas
normalmente binárias e biunívocas de representação, suas classes, partidos, seus
objetos e instituições que tendem a convergir na figura do Estado e de uma
política dirigida para o Estado (molares), a segunda se refere à lateralidade dos
fluxos libidinais que estabelecem relações e processos de transformação para
além dos lugares socialmente codificados e determinados pelas estruturas
sociais (molecular). Da mesma forma, pode haver um macro-fascismo e um
micro-fascismo. Daí afirmações como: “é muito fácil ser anti-fascista no nível
molar, sem ver o fascista que se é si-mesmo, que se conversa e alimenta, que se
autocompraz com as moléculas, pessoais e coletivas” 16 . E é nesta dimensão
micro-fascista que podemos encontrar uma resposta à questão: por que se deseja
sua própria repressão? É ela que prepara a consolidação de uma política estatal
fascista e que aparece como condição para sua emergência.
Dentre as múltiplas questões que a abordagem de Deleuze e Guattari
produzirá, uma chamará em especial nossa atenção. Ela se refere à utilização do
conceito de pulsão de morte para descrever o modelo de movimento em direção
à catástrofe que seria imanente ao fascismo. Essa realização da catástrofe, como
se uma máquina de guerra descontrolada tivesse se apropriado do Estado,
criando não exatamente um Estado totalitário, mas um Estado suicidário (para
falar com Paul Virilio), uma tanatopolítica que é uma necropolítica a se voltar
contra si mesma, levará os dois a afirmarem:
Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado
Totalitário que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o
fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma
em linha de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início,
15
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as
núpcias e a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães (...)
Uma máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que
preferia abolir seus próprios servos a parar a destruição 17 .
Nós veremos com calma o sentido desse recurso à pulsão de morte como
fundamento de um desejo social de catástrofe, como fundamento de uma
experiência de purificação, de um movimento sem telos que só pode se realizar
na sua própria aniquilação.
Frankfurt contra o fascismo
Outra vertente que se apoiará nos trabalhos de Freud para desenvolver
uma reflexão de larga escala sobre a psicologia do fascismo será a Escola de
Frankfurt. Desde os estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do
operariado alemão ao nazismo a partir da análise das articulações entre
“impulsos emocionais do indivíduo e suas opiniões políticas” 18 , os
frankfurtianos tomaram para si a tarefa de utilizar o quadro psicanalítico para
compreender as formas sensíveis de sujeição social. Fromm procurava, para
além da expressão explícita do engajamento político, compreender e tipificar as
estruturas motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua
compreensão visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre
comportamentos públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o
sistema de modificações bruscas das posições políticas da classe operária,
como a deserção do comunismo em direção ao nazismo.
Principalmente a partir dos anos quarenta, os frankfurtianos farão
diversos estudos sobre o anti-semitismo, sobre a formação do estado nazista
(Behemoth, de Franz Neumann), sobre a antecipação do nazismo no interior da
cultura alemã (De Calegari a Hitler e O ornamento da massa, de Sigfried
Kracauer), sobre as estruturas da propaganda fascista e de extrema direita (A
técnica psicológica de Martin Luther Thomas, de Adorno; Profetas do engano,
de Löwenthal e Guterman), sobre a economia nazista (Sobre o nacional-
socialismo: uma nova ordem?, de Friedrich Pollock), sobre a personalidade
autoritária (Estudos sobre a personalidade autoritária, de Adorno e o grupo de
Berkeley). Em suma, não seria possível menosprezar o tamanho do impacto do
nazismo no interior da trajetória da primeira geração da Escola de Frankfurt e
da maneira com que boa parte de suas figuras moldarão sua compreensão das
próprias sociedades de democracia liberal.
Mas será na Dialética do Esclarecimento, em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirão do quadro clínico da paranoia para dar conta
17
Idem, p. 280
FROMM, Erich. Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. The Dialectical
Imagination. Berkely: California University Press, 1996.
18da natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de
segregação inerentes às democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo
e outras formas de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a
dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de participação social no interior
de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais
se sustentariam a partir da generalização da paranoia como tipo social, mesmo
que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais, tivessem outra
forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos apenas uma
analogia, mas a descrição de uma modalidade de funcionamento social a partir
de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos
deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter
implicações na própria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar na
paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das
relações de identidade e alteridade, das fantasias de imunização, de contágio, de
perseguição e de grandeza. Na verdade, é a configuração do corpo social que será
compreendida como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificação e introjeção próprios do narcisismo que, por sua
vez, eram a expressão de dinâmicas próprias à constituição mesma do Eu do
indivíduo moderno com seus desconhecimentos e denegações. Freud insistira
claramente, por exemplo, que o narcisismo era uma fase necessária do
desenvolvimento individual e que seu mecanismo expunha dinâmicas próprias
da paranoia e da melancolia. Neste ponto, encontramos uma radicalização desta
perspectiva em Lacan e em sua maneira de mostrar como a própria constituição
“normal” do Eu moderno era paranoica, pois produtora de uma instância
psíquica que organizava suas relações ao mundo através de projeções,
introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegações e
agressividades 19 .
Neste sentido, era impossível colocar em circulação uma crítica que eleva
a paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno
não era o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo
social em risco perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse
fornecer regressões paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz.
Isto pode nos explicar porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do
fortalecimento do indivíduo moderno como contraponto à natureza paranoica
dos vínculos sociais, como seria o caso em uma perspectiva liberal. Na verdade,
os dois conceitos tecem relações profundas de solidariedade. Isto explicará
porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura do que conhecemos por
“personalidade autoritária”, os frankfurtianos desenvolverão estudos extensivos
aos modos gerais de regressão presentes também nas sociedades liberais.
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razões pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipótese de que “fascismo” não deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histórica que terá lugar na
Alemanha e na Itália anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma
convergência de práticas e discursos que persegue nossas sociedades como uma
19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982sombra e que se atualiza nas condições as mais diversas. Mas a titulo
operacional, essa sombra poderia ser descrita a partir de quatro vetores.
Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso curso.
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que a impotência
da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberação da violência por aqueles que já não aguentam mais
serem violentados. O carnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a conjugação
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, não há fascismo sem ressurreição dos Estados-nação em sua
versão paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que são
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educação Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pátria construída através do
genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-nação se mostra como o último refúgio do que é meu, do que
me é próprio. É o meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidário da insensibilidade absoluta em
relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela
opressão. Ele é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social não sejam transformadas. Pois toda política é uma questão de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que não reconhecido não existe. Mas ser
reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes não o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportável.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-
institucional pela própria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente
liberado, pode criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que
abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a
imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor
pela mão forte do governo expresso em uma liderança que parece estar acima da
lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor seus piores sentimentos
sem preocupação com seus efeitos, demonstrar seu desejo mais baixo de
violência como expressão de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessário que tais líderes pareçam cômicos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironização, taisproposições poderão circular com fricção baixa. Afinal, não é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a não ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de análise para saber em que
situações atuais esta descrição encaixa.

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