quinta-feira, 28 de março de 2019

Psicologias do fascismo Aula 2

Psicologias do fascismo
Aula 2
Na aula de hoje, começaremos a leitura de Psicologia das massas e análise do Eu,
escrito em 1921 por Sigmund Freud. Como havia dito anteriormente, a escolha em começar
um curso intitulado “psicologias do fascismo” com esse texto se justifica pelo seu caráter
fundador. O texto de Freud consolida um modelo de abordagem dos fenômenos de massa
que visa descrever, em um movimento sobreposto, o funcionamento social regressivo de
grupos, instituições e os processos de formação do indivíduo moderno. Daí o título peculiar
que articula “psicologia das massas” e “análise do Eu”. Esta articulação permite a Freud
fazer uma verdadeira crítica da psicologia social até então existente que inverte
completamente seus objetos e seu horizonte. Tal crítica nos leva à compreensão das
regressões imanentes a nossa vida institucional. Esse modelo de análise aparecerá, à
posteridade, como profícuo a fim de compreender fenômenos como o fascismo e outras
figuras do totalitarismo. Pois ele permite uma análise no interior da qual democracia liberal
e fascismo estarão em linha de contato, na qual o fascismo será uma latência da democracia
liberal. O que proponho nos nossos próximos encontros é seguir a argumentação freudiana,
apresentando a teses principais de seu livro.
Antes, lembremos como a reflexão política de Freud conhece três obras
fundamentais. Cada uma delas aborda uma dimensão do problema do político e tecem entre
si relações profundas. A primeira é Totem e tabu, livro que visa apresentar uma tese a
respeito dos fundamentos antropológicos do político através do mito do assassinato do pai
da horda primitiva e da produção da culpabilidade e da melancolia como afetos políticos
centrais. A segunda é exatamente Psicologia das massas como sua crítica da psicologia
social e sua centralidade nos processos verticais de identificação, como veremos nas
próximas aulas. Por fim, a última é Moisés e o monoteísmo, com sua maneira peculiar de
fornecer uma crítica aos fundamentos teológico-políticos do poder. Nós iremos ver esta
obra no último módulo de nosso curso.
Freud, leitor de Le Bon
A oposição entre psicologia individual e psicologia social e das massas, que à
primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a
examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige ao ser
humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a
satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições
excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros
indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado
enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual
é também desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente
justificado1.
1 FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14Essa introdução a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma nota
metodológica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se estabelecer
distinções estritas entre psicologia individual e psicologia social. O que só pode significar
que uma clínica da subjetividade será, necessariamente, uma clínica de fenômenos sociais.
Pois não há fato psicológico legível a partir de uma perspectiva solipsista, os modos de
relação a si e a própria constituição de uma noção identitária como o si-mesmo é
dependente destes fenômenos sociais que são: “as relações dos indivíduos aos seus pais,
irmãos e irmãs, a seu objeto de amor, a seu professor e a seu médico”2. Freud chega mesmo
a afirmar que a distinção entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser
situada no interior da psicologia individual, já que não há ato psíquico narcísico, ou seja,
não há amor de si que não se oriente a partir da internalização de uma teleologia das
relações sociais. O que não poderia ser diferente já que identidades individuais são
produções relacionais, as próprias instâncias da vida psíquica são internalizações de
disposições sociais de conduta. Proposições que podem nos levar à interpretação de Etienne
Balibar, para quem: “a própria individualidade é um caso particular da formação de
massa”3.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relações sociais. Neste
sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu tempo pode ser
sintetizada através da noção de abstração. Ao tomar o indivíduo isolado como “membro de
uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou uma instituição”, a psicologia social
passa por cima da estruturação sistêmica dos modos de interação social, ou seja, deste
modo de interação social que vai progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre
mãe e bebê à família, às instituições sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que
implica que experiências primeiras de interação no interior do núcleo familiar servirão de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante não para assumir alguma forma
de familiarismo, mas para insistir na dimensão instauradora do conflito. Pois a família é,
antes de qualquer coisa, um núcleo produtor de conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das configurações
familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz dependência não diz
subsunção simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante tentar compreender a
configuração dos processos de interação social postulando algum princípio abstrato como
“pulsão gregária”, “pulsão social”, “group mind” etc. Devemos compreender como modos
elementares de interação influenciam regimes de aplicação de princípios sociais mais
gerais. Daí porque Freud termina insistindo: “Nossas expectativas são orientadas por duas
possibilidades: que a pulsão social não seja nem originária nem indecomponível e que os
inícios de sua formação possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
exemplo na família”4.
A partir de tais considerações, Freud parte para uma certa revisão de literatura que
ocupará os próximos dois capítulos. Tal revisão começa com o livro de Gustave Le Bon, La
psychologie des foules, editado em 1895. A razão não deve ser procurada apenas no caráter
fundador deste livro que, aos olhos de muitos, aparece como a inauguração da psicologia
social e como a realização clássica dos princípios de uma sociologia das massas de forte
caráter conservador. De fato, Freud encontra uma problemática com a qual ele compartilha,
2 FREUD, Psicologia das massas - introdução
3 BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
4 FREUD, Psicologia das massas - introduçõaembora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em seu livro, Le Bon começa
afirmando:
As massas sempre desempenharam um papel importante na história, mas nunca tão
considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das massas, substituindo a
ação consciente dos indivíduos, representa uma das características da idade atual5.
Esta consciência do advento das massas à cena do político nas democracias modernas,
advento que implica uma política de mobilização capaz de romper com o impéris seguro
das leis e instituições, é o pano de fundo sócio-histórico das reflexões de Le Bon. Todo seu
livro é uma tentativa de compreender o advento das massas enquanto ator político como
uma regressão no sentido psicológico do termo. Daí porque ele insistirá que uma massa
psicológica seria dotada de uma unidade mental resultante do desaparecimento da
personalidade consciente dos indivíduos Le Bon chega a usar a idéia de hipnose para
insistir no caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos no interior da massa.
Freud aceitará tal perspectiva ao afirmar que o comportamento da massa não pode ser visto
como a somatória dos comportamentos individuais:
Devemos explicar o surpreendente fato de que este indivíduo sinta, pense e aja de
uma maneira totalmente distinta daquela que esperávamos desde que entra em uma
multidão de homens (Menschenmenge) que adquiriu a qualidade de uma massa
psicológica6.
Le Bon compreende tal mudança de comportamento como resultante do fato de: que
“nosso atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado sobretudo por
influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de nossos atos, encontram-se
causas sociais ignoradas por nós”7. Tais causas resultantes de sedimentações que compõe
“a alma de um povo” formariam um inconsciente coletivo responsável pela constituição da
unidade mental da massa. Daí a afirmação que a psicologia das massas seria uma
psicologias de processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização”8.
Esta comparação entre comportamento social e hipnose já havia sido abordada por
Gabriel Tarde em um livro que apareceu cinco anos antes que este de Le Bon, As leis da
imitação. Tarde, visto também como um nome importante na constituição da psicologia
social e recuperado recentemente principalmente devido ao interesse de Gilles Deleuze por
sua obra, insistia no papel fundamental da imitação na estruturação do vínculo social: “o ser
social, enquanto social, é por essência imitador. A imitação desempenha nas sociedades um
papel análogo àquele da hereditariedade nos organismos e da ondulação nos corpos
brutos”9. No entanto, esta imitação fundamental para a reprodução do vínculo social seria
um fenômeno, em larga medida, desenvolvido de maneira inconsciente. Daí porque Tarde
irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo”10, como alguém em
5 LE BON, Psychologie des foules, préface
6 FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
7 LE BON, idem, p. 22
8 idem, p. 24
9 TARDE, Les lois de l ́imitation, p. 12
10 idem, p. 84estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos (sonambulismo, hipnose, ação
social) encontramos a ilusão de ter ideias sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da imitação,
Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e de prestígio. Daí
afirmações como:
Foi necessário a fortiori no início de toda sociedade antiga uma grande autoridade
exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e afirmativos. Foi através do
terror e da impostura, como se diz normalmente, que eles reinaram? Não, esta
explicação é claramente insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio11.
A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiração capaz de
sustentar relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a hipnose. Segundo
ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de desejo, imobilizada em
lembranças de toda natureza, adormecidas mas não mortas”12. O hipnotizador será aquele
capaz de, através do seu prestígio, atualizar tal força potencial, atualizar este desejo
imobilizado em lembranças de toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como
sujeito que saber a respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de
aceitar ao dizer: “Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece
querer?”13.Tal relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de prestígio
poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser social”.
Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade é a imitação e a imitação é uma
espécie de sonambulismo”14.
Freud compreenderá fenômenos como a mútua sugestão dos indivíduos e o prestígio
do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando de explicações. E para
tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as relações de autoridade e de coesão
no interior da massa são expressões de vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que
Freud não teme em remeter ao conceito platônico de “Eros”. Mas a respeito de tais
vínculos, Freud dirá:
Todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que nas
relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são
afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam
bastante da sua natureza original, o suficiente para manter sua identidade
reconhecível (abnegação, busca de aproximação)15.
Ou seja, as relações políticas e a constituição das massas são uma questão de atração
libidinal, de amor. Não há relação vertical à autoridade e horizontal aos membros da massa
que não seja constituída a partir da dinâmica das relações amorosas, com sua produção de
objeto de amor e suas modalidades de identificação. Não há sujeição ou submissão sem
amor, é o que lembra Freud. Amor que não desconhece a força de atração dos corpos, a
11 idem, p. 86
12 idem, p. 87
13 idem, p. 97
14 idem, p. 97
15 FREUD; Psicologia das massas, op. cit., p. 43afecção dos corpos e suas modalidades de prazer. Afecção que, mesmo deslocada, tem sua
inteligibilidade nos mecanismos sexuais de procura de prazer e gozo. Há um gozo das
massas e é ele que precisa ser compreendido caso queiramos entender a natureza do
político.
Se voltarmos a Psicologia das massas e análise do Eu, veremos Freud se serve
deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo poderia se livrar dos
recalques de suas moções pulsionais, o que acarretaria a desaparição dos sentimentos de
responsabilidade e da consciência moral. Essa supressão do recalque aproxima os
fenômenos de massa e as formações do inconsciente. Mas ele logo insiste em operar uma
distinção extremamente significativa: o inconsciente de Le Bon, diz Freud, este
inconsciente resultante da sedimentação de heranças arcaicas não é o inconsciente
psicanalítico fundado em operações de recalque:
Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao qual
a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas nós
distinguimos um ‘recalque inconsciente” que é uma parte desta herança. Este
conceito de recalque falta em Le Bon16.
Quer dizer, falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor das
experiências sociais que podem aparecer como herança de experiências históricas. A
verdadeira questão é: quais os conflitos que levam sujeitos a se constituírem em uma massa
que se sustenta através da implementação de exigências libidinais? Esses conflitos
psíquicos, cuja compreensão exige a mobilização dos conflitos inerentes à constituição do
Eu, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de sujeição psíquica,
explicam principalmente a natureza das relações sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud não se interessa pelas dinâmicas revolucionárias, já que os
processos revolucionários são exatamente aqueles nos quais as figuras de autoridade são
depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever Psicologia
das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores, Paul Federn, escrevera
Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais (1919). Neste texto, que Freud
certamente conhecia pois seus argumentos principais foram apresentados na Sociedade das
quarta-feiras, Federn via no fim do Império Austro-Húngaro e na queda da figura do
Imperador, assim como na vitória da Revolução Soviética, a possibilidade do advento de
sujeitos políticos que não seriam mais “sujeitos do Estado autoritário patriarcal”. Para tanto,
tais sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relações fraternas, relações distintas e que
não se derivam completamente da estrutura hierárquica de uma relação com o pai que até
então havia marcado a experiência política de forma hegemônica. Para que novas formas de
identidades coletivas fossem possíveis, não bastaria apenas transmutar a identificação com
o pai em recusa de seu domínio. Seria necessária a existência de um modelo alternativo de
identificações que se daria de maneira horizontal e com forte configuração igualitária. Daí
uma afirmação maior como: “Dorme em nós, igualmente herdada ainda que em uma
intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo princípio social, este da
comunidade fraterna cujo motivo psíquico não está carregado de culpabilidade e temor
16 FREUD, Psicologia das massas, capítulo IIinterior. Seria uma liberação imensa se a revolução atual, que é uma repetição das revoltas
antigas contra o pai, tiver sucesso”17.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relações fraternas poderiam
constituir um “segundo princípio social” relativamente autônomo e não completamente
dedutível das relações verticais entre filhos e pais, inscreve-se no horizonte de reflexões
sobre estruturas institucionais pós-revolucionárias. A partir de tal modelo, Federn tentará
pensar o fundamento libidinal de organizações políticas não-hierárquicas como, por
exemplo, os sovietes e os conselhos operários que procuravam se disseminar na nascente
república austríaca graças às propostas dos social-democratas. A sociedade sem pais a que
Federn alude tem a forma inicial de uma república socialista de conselhos operários.
É fato que Freud não seguirá esta via. Para tanto, seria necessária a defesa de uma
dimensão de relações intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada na reciprocidade
igualitária. Tal dimensão não existe nos escritos de Freud que, neste sentido, estaria mais à
vontade lembrando da agressividade própria às relações fraternas com suas estruturais duais
baseadas em rivalidade. Por isto, as relações de cooperação tipificadas em confrarias ou
comunidades de iguais só podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano,
apoiando-se na exclusão violenta da figura antagônica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revolução bolchevique, Freud pergunta-se
sobre o que os soviéticos farão com sua violência depois de acabarem com seus últimos
burgueses.
Neste sentido, não é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de massa
para Freud não sejam, como poderíamos esperar, eclosões revolucionárias (como a Comuna
de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja: duas instituições que não pareceriam, a
primeira vista, exemplos de regressão social. Pois se trata de afirmar que a lógica da
regressão social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem,
criança, neurótico e que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no
cerne de nossas instituições (e não simplesmente nas força que visam desestabilizá-las). Se
levarmos em conta que estamos a falar de um cidadão do finado Império Austro-Húngaro,
podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder teológico-político da igreja e as
forças armadas é uma maneira metonímica de se referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza constitutiva
das relações verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo freudiano vem da igreja
católica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o general. As relações entre os
membros e o líder constitui uma relação na qual todos estão igualmente distantes do centro,
Por outro lado, é o vínculo libidinal ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do
desaparecimento do líder provocar ou pânico provocado pela anulação das ligações mútuas
ou uma desintegração que libera a violência generalizada contra aquele que aparece como o
outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relação entre identidade e
identificação no interior dos fenômenos sociais. A proposição de Freud se refere a uma tese
sobre o processo de formação de identidades coletivas. Uma identidade coletiva precisa de
uma identificação vertical para se constituir. Ela precisa de uma relação à representação de
soberania. Essa é uma tese forte e polêmica, mas lembremos que tal identificação vertical
não precisa necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
17 FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238ideia, uma representação, uma organização. Mas, para Freud, tais identificações verticais
devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois fenômenos: o
pânico e violência sem direção já que, como lembra Freud, não há religião do amor sem
violência; “Uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser dura e
sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda religião é uma religião
do amor para aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e à intolerância para com os não
seguidores”18. Nesta proposição, está sintetizado o fundamento do antagonismo político
através da consolidação de relações amigo-inimigo. As massas são constituídas como
mecanismos de defesa contra o pânico vindo da angústia da ausência de identificação,
assim como da defesa contra a desintegração da gestão das relações antagonistas entre
amigo e inimigo.
Problemas de imagens
Um outro ponto central que leva Freud a se aproximar de Le Bon enuncia-se na
afirmação: ‘A massa pensa por imagens que se chamam (hervorrufen) por associação, tal
como acontece no homem isolado quando este dá livre curso a sua imaginação”19. Este
pensar por imagens, pensar que segue a lógica da associação com suas regras de
contiguidade e semelhança, pensar que explicaria fenômenos como o contágio social, a
catarse e a sugestão, seria o ponto de partilha entre massa, pensamento selvagem,
pensamento infantil e neurose:
Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados, baseados
em associações: mas as idéias associadas pelas massas tem, entre elas, apenas
ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas encadeiam-se à maneira das
idéias de um Esquimó que, sabendo por experiência que o gelo, corpo transparente,
dissolve na boca, conclui que o vidro, corpo igualmente transparente, deve dissolver
na boca também; ou do selvagem que acredita adquirir a bravura de um inimigo
corajoso ao comer seu coração, ou do operário que, explorado pelo patrão, conclui
que todos os patrões são exploradores20.
Esta noção assume a distinção entre imagem e conceito, entre a abstração própria ao
conceito e a contiguidade indevida das imagens. No entanto, percebemos novamente o
deslocamento operado por Freud em idéias relativamente correntes de sua época. O modo
de pensar que Freud descreve é aquele próprio aos processos primários do inconsciente.
Neste sentido, eles não são arbitrários e vinculados ao erro, mas descrevem processos de
encadeamento de representações absolutamente necessários do ponto de vista da dinâmica
do desejo. Eles permitem a compreensão dos conflitos e desenvolvimentos que dão
inteligibilidade a uma função intencional central como o desejo. Por outro lado, sendo as
massas e as instituições o espaço de desdobramento de processos primários, chega-se
rapidamente à conclusão de que a análise não deverá se basear nas disposições normativas
18 FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
19 idem,
20 LE BON, idem, pp. 44-45imanentes ao horizonte de racionalidade social. Há uma dinâmica inconsciente que deve ser
desvelada e na qual se encontra o verdadeiro fundamento da coesão social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por similitudes
aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios elementares da lógica e do
entendimento. Foucault e Adorno, por razões distintas, insistiram bastante neste ponto:
como a razão moderna impôs à mimesis como figura de um pensar exilado das exigências
de racionalidade do entendimento. Desde o descrédito cartesiano à imaginação, o que tem
afinidade mimética é negado enquanto algo dotado de potência cognitiva. Vale sempre a
pena lembrar que a potência disruptiva da mimesis em sociedades pré-modernas implica na
implementação social de processos de diferenciação que não são solidários da entificação
do princípio de identidade, como é o caso no pensamento próprio ao conceito moderno de
razão.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das teorias de
Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexão sobre a natureza do líder das
massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja
uma pessoa, uma idéia ou instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio ou
carisma. Mas antes de aprofundar a natureza da relação entre indivíduo e líder da massa,
Freud passa à distinção de McDougall entre massas organizadas (group) dotadas de
singularidade e responsáveis por processos de individuação e massas desorganizadas e
efêmeras (crowd) que parecem impedir toda e qualquer individuação. O fato significativo é
que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso paradigmático. Ou seja, de fato, a
tradução inglesa de Strachey não estava totalmente incorreta: o diagnóstico freudiano é
também uma group psychology. O que deixa a crítica freudiana ainda mais próximo de
nossos modos de organização social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen à
psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social, com
especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a possibilidade das
hipóteses fundamentais de Psicologia das massas e análise do eu valerem também para
sociedades democráticas insistindo, no seu caso, na irredutibilidade da norma jurídica à
crença ou amor por uma pessoa ou ideia personificada. Ao acreditar na relação fundamental
entre norma e fantasia, ou antes, ao operar como quem não é capaz de estabelecer
distinções entre norma e fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das
massas e dos “grupos transitórios” fortemente dependentes de móbiles psicológicos para
todo e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud não apenas indicaria a gênese das
ilusões substancialistas que afetam a representação da autoridade do Estado, mostrando
como tais ilusões significariam o retorno de uma mentalidade arcaica a ser combatida por
inviabilizar uma concepção democrática da vida política incapaz de sobreviver ao conflito
particularista das paixões. Neste sentido, a perspectiva freudiana não é eminentemente
crítica, o que para Kelsen seria bem-vindo. Ao contrário, ao insistir em compreender todo e
qualquer vínculo social a partir “dos processos de ligação e associação libidinal” em sua
multiplicidade empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusão tanto para a própria
sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica. De um
lado, Kelson dirá: “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de grupo”21, insistindo
que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o Estado, para o jurista austríaco
21 KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323Não é um dos vários grupos transitórios de extensão e estrutura libidinal variáveis; é
a ideia diretora, que os indivíduos pertencentes aos grupos variáveis colocaram no
lugar de seu ideal de ego, para poderem, por meio dela, identificar-se uns com os
outros. As diferentes combinações ou grupos psíquicos que se formam quando da
realização de uma única ideia de Estado não incluem, de modo algum, todos os
indivíduos que, num sentido inteiramente diverso, pertencem ao Estado. A
concepção inteiramente jurídica do Estado só pode ser entendida na sua
conformidade jurídica específica, mas não psicologicamente, ao contrário dos
processos de ligação e associação libidinal, que são o objeto da psicologia social22.
Ou seja, a existência de uma concepção inteiramente jurídica exigiria uma
universalidade genérica que não pode ser assegurada se creio que todas as instituições
devem necessariamente encontrar seu fundamento em processos de identificação e
investimento libidinal, tal como quer Freud. Pois não haveria identificações universalmente
recorrentes, já que elas dependem das particularidades empíricas das relações familiares em
sua contextualidade especifica.
No entanto, é fato de que, para o psicanalista, a “concepção inteiramente jurídica do
Estado” da qual fala Kelsen seria simplesmente uma hipóstase que nos impediria de
compreender as dinâmicas próprias àquilo que poderíamos chamar de “estrutura
fantasmática da autoridade” em nossas sociedades, a saber, a maneira com que autoridade e
fantasia se articulam, o que nos levará diretamente à teoria do supereu, como veremos na
próxima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura nossa relação
ao lugar soberano do poder em Totem e tabu. Lá, Freud lembrava como tudo se passava
como se sujeitos agissem no interior das relações sociais tendo que carregar o peso da
culpabilidade e da melancolia produzida pelo assassinato de um pai primordial. Os sujeitos
se socializam, eles agem socialmente a partir da culpa e da melancolia. Culpa anterior a
qualquer ação, melancolia vinda do sentimento de perda de um objeto perdido vivida sob a
forma de reprimendas e auto-depreciação. Neste sentido, se Freud se vê obrigado a afirmar
o caráter filogenético de sua fantasia social do pai primevo, é por entender que os vínculos
à ordem jurídica procuram se legitimar através da reiteração retroativa de um modelo de
demanda de autoridade. Tais vínculos não se alimentam apenas da especificidade de
relações familiares, mas assentam-se em outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o
exército, aparelhos mais gerais que incitam continuamente a certas formas de vínculos
libidinais. Com esta crítica, Freud recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento
jurídico para além do Estado, já que se trata de criticar o fundamento fantasmática da
autoridade. De fato, a esfera do direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de
“purificação política dos afetos” através da defesa da validade ideal da norma que só pode
nos levar à crença na imunidade à problematização política do quadro jurídico com seu
22 Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e leituras
“republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo para o exercício
do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a ereção dos cidadãos
que formam o bando político republicano. É claramente a ideia republicana que é aqui objeto de amor
unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem cabeça, sem ‘chefe’ no sentido
freudiano do termo” (BAAS, Bernard; Y a-t-il de psychanalystes sans-culotte?, op. cit., p. 217)ordenamento e seus mecanismos previamente estabelecidos de revisão. a teoria freudiana
da psicologia das massas fornece uma crítica a tal positivismo jurídico.

Psicologias do fascismo Aula 1

Psicologias do fascismo
Aula 1
Goebbels chega a minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em
duas filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer
a saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o
braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se
assistisse a um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado.
Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis
palavras “Eu não desejo a sua saudação”. Daí vira-se e vai na direção da
porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha própria
fábrica, entre meus próprios trabalhadores, com o braço levantado.
Fisicamente, só posso ficar assim. Então fixo o olhar no pé torto de
Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma
posição até acordar 1 .
Este é o relato de um sonho de um pequeno industrial alemão em 1933,
ano da ascensão de Hitler à chancelaria. Um sonho no qual talvez se encontre
muito da realidade socio-econômica que seria a regra no país a partir de então.
Lá estava a figura do poder que reconstitui a sociedade a partir de novas
posições nas quais todos estão igualmente distantes do centro. O pequeno patrão
agora está ao lado de seus empregados, obrigado a fazer a saudação nazista
como todos. Mas há algo nos corpos que não se adestra muito bem. Os gestos são
feitos com esforço indescritível. Há algo nos corpos que sai de suas imagens
necessárias. O corpo de Goebbels é manco, o do pequeno patrão é exposto em
seu descontrole, em seu esforço para sustentar um gesto simples. “Eu não desejo
sua saudação” é o que diz o ministro da propaganda de Hitler. Esta é uma
maneira de dizer : “seus gestos são vazios, eles denunciam como falta-lhes o
sedimento da identificação”.
Neste sonho, toda uma dimensão libidinal de resistência e conflito
aparece. Por mais que o sujeito procure “fazer como”, há o corpo que resiste, há o
corpo que manca. Quando ele acordar e estiver na realidade socialmente
partilhada levantando o braço para fazer a saudação nazista, o sonho lhe
lembrará deste real. Ele lhe produzirá um sentimento de irrealidade que pode a
qualquer momento expo-lo em sua inverdade. O corpo lhe lembrará do caráter
real de seu próprio desejo e da irrealidade da vida social.
Uma abordagem psicológica de fenômenos sociais é desejável?
Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram não apenas como nossas
formações do inconsciente, nossos sintomas, angústias, desejos e fantasias são
expressões de dimensões fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâmicas imanentes a fenômenos sociais,
1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30como o fascismo, exige a mobilização de uma dimensão propriamente
“psicológica”, mesmo que este termo vá, no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinção específica, até o ponto em que talvez não tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicológico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusão de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizávamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarão atravessados por uma urgente
necessidade de modificação.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questões prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemológica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razão para se propor uma abordagem
psicológica do fascismo?”, até porque não é claro o que entendemos por
“abordagem psicológica” neste caso. A outra questão é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenômeno totalitário historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemônicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, então qual sua especificidade, em que
condições poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questão como a anterior, relativa à abordagem psicológica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Não estaríamos a
produzir um erro categorial primário ao mobilizarmos categorias psicológicas
para descrever fenômenos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interação entre as múltiplas esferas sociais de
valores em prol de descrições sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representações mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reprodução material da vida. Como se,
ao final, as relações sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situação ideal originária na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relações de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressão institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posição de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da análise da
lógica do poder.
Como se não bastasse tal dificuldade epistemológica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
análise psicológicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunção explícita entre:
criminologia, reflexão sociológica sobre o impacto social dos processo de
urbanização na Europa, reflexão política sobre movimentos de massa, além de
considerações sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo não será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja tradução mais
aproximada seria “psicologia das multidões”. Os principais textos são escritos em
um prazo de não mais de quinze anos: Psychologie des foules, de Gustave Le Bon éde 1895. Les lois de l’imitation, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu L’opinion et la foule, de 1901. La folla delinquente, do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussões sobre psicologia das massas alcançarão
o mundo anglo-saxão principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregário (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá: The Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a análise do Eu é de 1921.
Conhecemos análises anteriores a respeito de fenômenos de massa, elas
estão lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e
de Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e
Maupassant. Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi
anteriormente explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada
um a sua maneira, fazer das massas, da multidão, o objeto de uma ciência a parte
inteira, o que não era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da
regressão social, das involuções que estariam a ameaçar as novas sociedades
capitalistas urbanas do século XIX. Assumindo uma noção bastante presente na
psicologia de então, que definia a doença mental como degenerescência, como
retorno a estágios arcaicos de maturação e desenvolvimento, esses trabalhos
(embora os trabalhos de Tarde sejam uma exceção a este caso) veem as massas
como o equivalente social de uma degenerescência patológica, propícia a
comportamentos criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reações
violentas e incontroláveis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
história, mas nunca tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das
massas, substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual” 2 . Pois não seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidões (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensão do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das nações.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período
de “anarquia confusa precedendo a eclosão de novas sociedades”, período
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva” 3
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo” 4 ,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
LE BON, Psychologie des foules, préface
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
2
3Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido
psicológico do termo. Regressão a uma sociedade ingovernável, já que não seria
possível governar as massas. No máximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria não ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós” 5 . Tais causas
resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsável pela constituição da unidade mental
da massa. Daí a afirmação de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização” 6 .
Se nos perguntarmos pelas condições históricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará história
posteriormente:
Hoje, as reivindicações das multidões são cada vez mais claras e visam
destruir de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse
comunismo primitivo que foi o estado normal de todos os grupos
humanos antes da aurora da civilização 7 .
O que não poderia ser diferente, já que as condições históricas para o
aparecimento de tal psicologia não é outra que as experiências revolucionárias
que sacudiram a França do século XIX, em especial a Comuna de Paris, de 1871,
com sua insubmissão das classes populares às representações de ordem e
autoridade. Isto explica um pouco da razão pela qual foi na França que a
psicologia das massas acabou por aparecer inicialmente. Foram três revoluções
populares em menos de um século (1789, 1848, 1871). Diante da subida à cena
da história de revoluções de massa nas quais a natureza do poder era contestada,
a psicologia será mobilizada para construir um discurso social com pretensões
científicas no qual o corpo social era apresentado como em risco de
degenerescência, como tais fenômenos seriam explosões patológicas de
irracionalidade.
Certamente, devido a sua origem claramente reativa aos processos
históricos de transformação social, a psicologia das massas acabaria por ser
relegada à condição de curiosidade histórica se ela não tivesse sido
completamente invertida por Sigmund Freud, em seu Psicologia das massas e
análise do eu, de 1921. Veremos com mais calma tal inversão no interior de nosso
curso, mas se nosso curso começa com Freud é por ele ter representado uma
espécie de novo começo para a abordagem psicológica dos fenômenos sociais.
Primeiramente, porque não se tratava mais de descrever as regressões que
ameaçariam do exterior a marcha do progresso própria ao processo de
racionalização das sociedades europeias do começo do século XX.
LE BON, idem, p. 22
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
5
6O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressão do primeiro não
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmáticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinção entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode
aparecer nas massas espontâneas de maneira “mais camuflada”. Maneira de
afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituições, isto no sentido de uma psicologia da regressão imanente ao
funcionamento normal de nossas instituições, e não mais psicologia da regressão
que apareceria como desvio em relação ao bom funcionamento normal das
instituições democráticas. Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a
psicologia das massas de Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen 8 .
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituições que aparecem como subsistemas inerentes a toda noção de
democracia liberal seriam a expressão mais evidente de núcleos de regressão
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas não são a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisórios em instituições democrático
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religião triunfará não apenas sobre
a psicanálise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Não podemos sequer
imaginar como é potente, a religião” 9 .
Se, para Freud, a história da democracia no ocidente será uma história de
afastamentos malogrados em relação tanto ao núcleo teológico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierárquicas e militarizadas, se esses núcleos e
figuras conhecerão retornos periódicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepção teológico-política de poder (a secularização de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relação é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicação da noção clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenômenos sociais que colocariam em risco o horizonte de
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará então a análise das latências
de regressão imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicológico de fenômenos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
núcleo teológico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
8
9
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78relações sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos são
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuação se realizam perpetuariam modos de relação social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos são próprios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissão à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna não seria exatamente o esteio de
uma forma democrática de vida baseada na cooperação imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressão
social. E não será por acaso que comportamentos xenófobos, racistas e violentos
não virão necessariamente dos integrantes de famílias em decomposição, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradação, mas
também de famílias aparentemente sólidas, países aparentemente prósperos. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de auto-
crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questão epistemológica inicial, esta que dizia
respeito à adequação de propor uma análise psicológica de fenômenos sociais. O
que vemos aqui é como não seria possível compreender fenômenos sociais, seus
modos de criação de adesão, as modalidades de produção de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilização de fantasmas, de afetos e representações que
não são individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos são individuais. Lembremos do que
diz Freud:
A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas,
que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de
sua agudeza se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das
relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é
também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado mas
inteiramente justificado 10 .
Em uma afirmação desta natureza, fica evidente quão pouco clara são
noções como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo
dotado de realidade ontológica. Se pensamos o ser humano no interior de
relações de desejo, é impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever
estruturas sociais de relação. Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos
são modos de participação social. Podemos mesmo dizer, não são indivíduos que
desejam, mas a sociedade deseja através dos indivíduos. Não são indivíduos que
produzem fantasias, mas a sociedade produz fantasias através dos indivíduos. É
a história dos desejos desejados antes de mim, como disse uma vez Alexandre
Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo meus, nos fantasmas que julgo
10
FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do Eu, São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14meus. Neles, encontram-se tanto a constelação familiar quanto a história dos
povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que se recusou a se
constituir como família, como povo, como raça.
O que é fascismo?
O texto de Freud é de 1921 e seu horizonte histórico é profundamente marcado
pela primeira guerra civil europeia que passou para a história como a Primeira
Guerra Mundial. Ou seja, seu objeto não poderia ser o que aparecerá anos depois
como fascismo. Mas com a ascensão do nazismo em janeiro de 1933 foram
publicados, no mesmo ano, dois textos propondo uma análise psicológica do
fascismo a partir do quadro compreensivo derivado do proposto por Freud. São
eles : A estrutura psicológica do fascismo, de Georges Bataille, e A psicologia de
massa do fascismo, de Wilhelm Reich. Esses dois textos, escritos por autores que
não se conheciam e vindos de tradições distintas, irão inaugurar uma longa série
de trabalhos que procurarão utilizar conceitos clínicos para dar conta tanto do
fascismo como de seus mecanismos imanentes, como o anti-semitismo (muito
mais presente no nazismo alemão do que no fascismo italiano), o totalitarismo, a
concepção orgânica do corpo social com sua forma de vínculo ao território, o
nacionalismo militarista, a concepção imunitária de identidade.
Dois aspectos saltam imediatamente aos olhos na comparação entre esses
dois textos. O primeiro consiste em perceber como eles procuram fornecer uma
teoria libidinal da regressão social. Ou seja, eles procuram defender a tese de que
fenômenos como o fascismo não podem ser explicados se não levamos em conta
a economia libidinal que lhe seria própria. Ele não seria um fenômeno de classe,
de raça, de nação, mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer sentir em
qualquer lugar e momento. Para sermos claros, o que esses textos afirmam é a
existência de algo como um regime fascista do desejo que deveria ser o
verdadeiro alvo de uma ação política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, não procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressão política do retorno a estruturas
arcaicas de comportamento, um pouco como vimos Le Bon a falar da emergência
das massas no campo político. Alguém como Reich, por exemplo, insistirá que
longe da ressurgência de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do
resultado final de um trabalho de civilização que confunde socialização e
repressão pulsional. Pois até agora não houve processo civilizacional que não se
constituiu sobre os escombros das pulsões sexuais, tema também caro a Bataille.
Daí porque é importante lembrar como: “a estruturação autoritária do homem se
produz em primeiro lugar através da ancoragem de inibições e de angústias
sexuais na matéria viva das pulsões sexuais” 11 . Ou seja, tudo se passa como se
eles estivessem a dizer que não é falta de civilização que produz o fascismo, mas
civilização em sua função repressiva bem sucedida e em sua capacidade de
produção de satisfações substitutas à sexualidade reprimida.
Mas essas teorias não funcionarão simplesmente como a figura do que
Foucault chamará décadas depois de “a hipótese repressiva”. Pois elas lembrarão
como o fascismo será incompreensível a partir da hipótese de um regime
repressivo “lei e ordem”. Antes, ele é a mobilização contínua e simultânea da
11
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75transgressão e da repressão. Ele é a articulação entre a suspensão da lei e o culto
da lei. É que visa Reich ao afirmar: “O fascismo não é, como se tende a acreditar,
um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama
de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários” 12 . Bataille dirá
algo semelhante quando afirmar, sobre o fascismo: “a revolução afirmada como
um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a
dominação interna exercida militarmente por milícias” 13 . Há a emergência do que
Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa da homogeneidade da
sociedade utilitária da produção pulsando no interior do fascismo. Mesmo o
vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma incondicionalidade que
se coloca para além de todo julgamento utilitário.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposição política
de que o fascismo só pode crescer em situações pré-revolucionárias. De certa
forma, ele é a figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevolução
preventiva que se faz passar por revolução, e este “se fazer passar por” é o ponto
decisivo aqui. Pois esta é uma forma desses autores afirmarem que o ponto
analítico fundamental passa por compreender por que, em dado momento,
setores majoritários da população desejaram o fascismo. Pois uma teoria que
eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços sociais precisará responder
sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará procurar nele os traços
conjugados de revolta contra a opressão social e reforço da opressão.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clássico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso sobre a
servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da
servidão a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos
se deseja a servidão, por que em certos momentos se deseja esse processo de
concentração radical da soberania na mão de um? Não se trata de descrever a
servidão a partir da submissão à força, mas a partir da sua associação à voluntas,
de um querer e participar à sua própria servidão, e este é o ponto fundamental:
Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas
aldeias, tantas cidades e tantas nações suportem por vezes um único
tirano, que tem o poder que elas mesmas lhe dão; cujo poder de
prejudicá-las é o poder que elas mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes
algum mal porque elas próprias preferem padecer deste mal a
contradizer o tirano 14 .
O segredo será pensar as modalidades através das quais os sujeitos
participam de sua própria servidão, como eles serão, ao mesmo tempo, a vítima e
o carrasco. Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da
estrutura libidinal do fascismo, eles não deixarão de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulação novamente por Reich:
Idem, p. 17
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
12
13Pois como disse Reich, o surpreendente não é que pessoas roubem, que
outros façam greve, mas sim que os famintos não roubem sempre, que os
explorados não façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploração, a humilhação, a escravidão, ao ponto não apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Não, as massas não
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstância, e é isto que se faz necessário compreender 15 .
A resposta de Reich e Bataille passará por insistir que categorias como
opressão, repressão, ameaça não bastam, embora não se trate de ignorar a
presença dos fenômenos que elas descrevem. Há certa liberação que o fascismo
realiza, há certa revolta que ele libera e não será possível compreender sua força
sem analisar sua produção. Entender a natureza dessa produção será um dos
desafios mais complexos.
Quando décadas depois Deleuze e Guattari retornarem aos problemas
internos às psicologias do fascismo e às formas de paralisia à emancipação social,
após a consciência da paralisia das forças de transformação produzidas a partir
de maio de 68, quando eles retornarem em uma via que procura explicitamente
recuperar pontos importantes do pensamento de Reich, eles claramente verão
como estratégia política maior mobilizar a crítica em duas direções: uma macro-
política e outra micro-política. Se a primeira se refere as grandes estruturas
normalmente binárias e biunívocas de representação, suas classes, partidos, seus
objetos e instituições que tendem a convergir na figura do Estado e de uma
política dirigida para o Estado (molares), a segunda se refere à lateralidade dos
fluxos libidinais que estabelecem relações e processos de transformação para
além dos lugares socialmente codificados e determinados pelas estruturas
sociais (molecular). Da mesma forma, pode haver um macro-fascismo e um
micro-fascismo. Daí afirmações como: “é muito fácil ser anti-fascista no nível
molar, sem ver o fascista que se é si-mesmo, que se conversa e alimenta, que se
autocompraz com as moléculas, pessoais e coletivas” 16 . E é nesta dimensão
micro-fascista que podemos encontrar uma resposta à questão: por que se deseja
sua própria repressão? É ela que prepara a consolidação de uma política estatal
fascista e que aparece como condição para sua emergência.
Dentre as múltiplas questões que a abordagem de Deleuze e Guattari
produzirá, uma chamará em especial nossa atenção. Ela se refere à utilização do
conceito de pulsão de morte para descrever o modelo de movimento em direção
à catástrofe que seria imanente ao fascismo. Essa realização da catástrofe, como
se uma máquina de guerra descontrolada tivesse se apropriado do Estado,
criando não exatamente um Estado totalitário, mas um Estado suicidário (para
falar com Paul Virilio), uma tanatopolítica que é uma necropolítica a se voltar
contra si mesma, levará os dois a afirmarem:
Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado
Totalitário que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o
fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma
em linha de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início,
15
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as
núpcias e a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães (...)
Uma máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que
preferia abolir seus próprios servos a parar a destruição 17 .
Nós veremos com calma o sentido desse recurso à pulsão de morte como
fundamento de um desejo social de catástrofe, como fundamento de uma
experiência de purificação, de um movimento sem telos que só pode se realizar
na sua própria aniquilação.
Frankfurt contra o fascismo
Outra vertente que se apoiará nos trabalhos de Freud para desenvolver
uma reflexão de larga escala sobre a psicologia do fascismo será a Escola de
Frankfurt. Desde os estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do
operariado alemão ao nazismo a partir da análise das articulações entre
“impulsos emocionais do indivíduo e suas opiniões políticas” 18 , os
frankfurtianos tomaram para si a tarefa de utilizar o quadro psicanalítico para
compreender as formas sensíveis de sujeição social. Fromm procurava, para
além da expressão explícita do engajamento político, compreender e tipificar as
estruturas motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua
compreensão visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre
comportamentos públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o
sistema de modificações bruscas das posições políticas da classe operária,
como a deserção do comunismo em direção ao nazismo.
Principalmente a partir dos anos quarenta, os frankfurtianos farão
diversos estudos sobre o anti-semitismo, sobre a formação do estado nazista
(Behemoth, de Franz Neumann), sobre a antecipação do nazismo no interior da
cultura alemã (De Calegari a Hitler e O ornamento da massa, de Sigfried
Kracauer), sobre as estruturas da propaganda fascista e de extrema direita (A
técnica psicológica de Martin Luther Thomas, de Adorno; Profetas do engano,
de Löwenthal e Guterman), sobre a economia nazista (Sobre o nacional-
socialismo: uma nova ordem?, de Friedrich Pollock), sobre a personalidade
autoritária (Estudos sobre a personalidade autoritária, de Adorno e o grupo de
Berkeley). Em suma, não seria possível menosprezar o tamanho do impacto do
nazismo no interior da trajetória da primeira geração da Escola de Frankfurt e
da maneira com que boa parte de suas figuras moldarão sua compreensão das
próprias sociedades de democracia liberal.
Mas será na Dialética do Esclarecimento, em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirão do quadro clínico da paranoia para dar conta
17
Idem, p. 280
FROMM, Erich. Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. The Dialectical
Imagination. Berkely: California University Press, 1996.
18da natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de
segregação inerentes às democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo
e outras formas de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a
dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de participação social no interior
de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais
se sustentariam a partir da generalização da paranoia como tipo social, mesmo
que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais, tivessem outra
forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos apenas uma
analogia, mas a descrição de uma modalidade de funcionamento social a partir
de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos
deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter
implicações na própria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar na
paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das
relações de identidade e alteridade, das fantasias de imunização, de contágio, de
perseguição e de grandeza. Na verdade, é a configuração do corpo social que será
compreendida como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificação e introjeção próprios do narcisismo que, por sua
vez, eram a expressão de dinâmicas próprias à constituição mesma do Eu do
indivíduo moderno com seus desconhecimentos e denegações. Freud insistira
claramente, por exemplo, que o narcisismo era uma fase necessária do
desenvolvimento individual e que seu mecanismo expunha dinâmicas próprias
da paranoia e da melancolia. Neste ponto, encontramos uma radicalização desta
perspectiva em Lacan e em sua maneira de mostrar como a própria constituição
“normal” do Eu moderno era paranoica, pois produtora de uma instância
psíquica que organizava suas relações ao mundo através de projeções,
introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegações e
agressividades 19 .
Neste sentido, era impossível colocar em circulação uma crítica que eleva
a paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno
não era o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo
social em risco perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse
fornecer regressões paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz.
Isto pode nos explicar porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do
fortalecimento do indivíduo moderno como contraponto à natureza paranoica
dos vínculos sociais, como seria o caso em uma perspectiva liberal. Na verdade,
os dois conceitos tecem relações profundas de solidariedade. Isto explicará
porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura do que conhecemos por
“personalidade autoritária”, os frankfurtianos desenvolverão estudos extensivos
aos modos gerais de regressão presentes também nas sociedades liberais.
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razões pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipótese de que “fascismo” não deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histórica que terá lugar na
Alemanha e na Itália anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma
convergência de práticas e discursos que persegue nossas sociedades como uma
19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982sombra e que se atualiza nas condições as mais diversas. Mas a titulo
operacional, essa sombra poderia ser descrita a partir de quatro vetores.
Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso curso.
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que a impotência
da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberação da violência por aqueles que já não aguentam mais
serem violentados. O carnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a conjugação
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, não há fascismo sem ressurreição dos Estados-nação em sua
versão paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que são
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educação Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pátria construída através do
genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-nação se mostra como o último refúgio do que é meu, do que
me é próprio. É o meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidário da insensibilidade absoluta em
relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela
opressão. Ele é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social não sejam transformadas. Pois toda política é uma questão de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que não reconhecido não existe. Mas ser
reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes não o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportável.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-
institucional pela própria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente
liberado, pode criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que
abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a
imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor
pela mão forte do governo expresso em uma liderança que parece estar acima da
lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor seus piores sentimentos
sem preocupação com seus efeitos, demonstrar seu desejo mais baixo de
violência como expressão de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessário que tais líderes pareçam cômicos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironização, taisproposições poderão circular com fricção baixa. Afinal, não é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a não ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de análise para saber em que
situações atuais esta descrição encaixa.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Mídia esvazia significado oculto do Ano Novo


cinegnose.blogspot.com.br
Mídia esvazia significado oculto do Ano Novo
10-13 minutos

Nesse momento de contagem regressiva para o Ano Novo, cada telejornal e programa de entretenimento recorre à pauta de sempre: as resoluções para o novo ano e as simpatias e crendices para o reveillon. Principalmente agora, época em que desempregados e trabalhadores temporários foram reciclados como “empreendedores” para tentar elevar o astral da patuleia. Mas tudo isso esconde um significado oculto e milenar das festividades de final de ano que envolve “Janus” -  a divindade indo-europeia ambivalente com duas caras, uma olhando para o futuro e a outra para o passado. De onde veio “Janeiro”, cujo primeiro dia do mês na Roma antiga era dedicado a rituais e sacrifícios ao deus criador das mudanças e transições, como progressão do passado para o futuro, de uma visão para a outra, de um universo para o outro. Janus olhava para o futuro, mas também para o passado para lembrar e aprender. Mas para grande mídia é apenas a comemoração do fim de uma ano velho e a celebração otimista de um ano supostamente novo. Não olhar para o passado e repetir os mesmos erros no futuro. Celebrar o esquecimento. 

Quando o melhor amigo de Einstein, Michele Besso, morreu em 1955 apenas algumas semanas antes da sua morte, Einstein escreveu uma carta para a família de Besso em que apresentou condolências que só o pai da Relatividade faria: “Ele partiu desse estranho mundo um pouco antes de mim. Mas nada disso importa. Para nós que somos físicos convictos, a distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, embora persistente”.

Muito tempo antes de Einstein, o pré-socrático Parmênides sugeriu também algo parecido: o filósofo grego acreditava que o universo é o conjunto de todos os momentos de uma só vez. Toda a história do universo simplesmente é. A visão do espaço e tempo juntos como uma única coleção de quatro dimensões de eventos, ao contrário de um mundo tridimensional que evolui ao longo do tempo.
Algo que seria partilhado pelos seres Tralfamodorianos, raça alienígena que aparece no filme gnóstico Matadouro Cinco (1972, baseado no romance homônimo de Kurt Vonnegut – clique aqui) – para eles, visitar o passado ou o futuro seria nada mais do que atravessar uma rua.

Ou para o britânico Julian Barbour, o mais enérgico e persistente físico que incansavelmente há décadas investiga a tese de que o tempo não existe, construíndo modelos teóricos da gravidade clássica e quântica em que o tempo não desempenha qualquer papel relevante.

"Matadouro 5": ir do futuro ao passado é como atravessar uma rua

Arquétipos do Tempo

Mas mesmo esses defensores “eternalistas” ou do “universo em bloco atemporal” reconhecem a existência do relógio ou, no mínimo, que possam estar atrasados para algum prosaico compromisso marcado anteriormente. Afinal, tudo isso vai contra a nossa experiência habitual cotidiana: cada momento subsequente é trazido à existência a partir de um momento anterior pela passagem do tempo.

Mas se atualmente físicos teóricos entabulam seus modelos e equações para provar que o tempo é uma mera ilusão, há milênios no campo das mitologias e dos arquétipos ocorreram tentativas de compreender o Tempo através da captura dessa passagem de um momento para o outro por meio de narrativas fantásticas que tentam dar conta do fluxo da existência.

Mitologias e arquétipos que continuam presentes nos nossos dias, porém agora transformados em eventos secularizados, isto é, convertidos em comemorações como as festas de Reveillon promovidas pela grande mídia e indústria do turismo e entretenimento. A passagem do tempo transformou-se em mercadoria ou serviço oferecido pelo turismo ou como programa de TV para anestesiar o tédio daquelas que ficaram para trás nas comemorações.

Se as mitologias em torno do Tempo no passado, como a figura misteriosa de Janus (a divindade indo-europeia ambivalente com duas caras, uma olhando para o futuro e a outra para o passado) eram esforços da cultura em compreender a existência, hoje é o contrário: fazer esquecer o “ano velho” e apenas olhar para o futuro, firme em resoluções pessoais que jamais serão cumpridas.

E talvez o pior: o esforço midiático de explorar e mitologia e fazê-la regredir para a magia - toda a sorte de crendices, simpatias e superstições que envolvem as entradas de ano novo celebradas pela mídia em seus telejornais e programas de entretenimento como formas de celebrar o esquecimento e induzir um falso otimismo. Principalmente em tempos de baixo astral nacional com desemprego crescente e crise econômica crônica.

Há um significado oculto e milenar por trás de todos os rituais em comemorações em torno da chegada do Ano Novo. Acreditamos que se trata apenas de festas que trazem um novo ano com novas resoluções. Mas na realidade este dia tem um significado mais profundo: o nome do mês de janeiro é derivado do deus de duas faces com o nome latino de “janus”.
As duas faces de Janus

Por que ele tinha duas faces? Porque uma olha para o passado e outra para o futuro, essencialmente o que deveríamos fazer no começo do ano novo: olhar para o futuro cheio de esperanças; mas também olhar para o passado e relembrar os acertos e erros, momentos tristes, oportunidades perdidas e promessas que não se cumpriram. Mas fazemos exatamente o contrário – celebramos o esquecimento, em nome do otimismo celebrado pela grande mídia.

Janus foi um dos primeiros deuses de Roma, mas possui também origens nas tradições hindus com o mesmo duplo sentido – chamado de “Caminhos dos Deuses” (deva-yana) e “Caminho dos Ancestrais”(pitri-yana). O simbolismo de Ganesha guardava muitos paralelos com o de Janus: é também mestre dos “Dois Caminhos” que são construídos tanto para os céus quanto para os infernos. Correspondendo aos ciclos de purificação que precisamos seguir.

Assim Janus/Jana adquire poderes e virtudes na medida em que o candidato tenha se purificado em seu “inferno interior” cármico com sucesso – quanto mais descemos ao inferno pessoal, mais ascendemos ao nível do “céu” que corresponde ao nível de consciência que conseguimos através da purificação.

Em Roma, Janus tornou-se um deus criador das mudanças e transições, como progressão do passado para o futuro, de uma visão para a outra, de um universo para o outro. A deidade do início de qualquer coisa. O deus das portas.

Janus e Janeiro

Por isso o primeiro mês do ano lhe foi consagrado - “janeiro”, de “janus” ou “januaris”, “portão”. Para Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

    É o Guardião das Portas que ele abre e fecha, tem por atributo o cajado e a chave de porteiro. Seu rosto duplo significa que vela tanto pelas entradas quanto pelas saídas, que olha o interior e o exterior, a direita e a esquerda, o alto e o baixo, a frente e as costas, o pró e o contra. Seus santuários são sobretudo arcos, como as portas e as galerias são seus lugares de passagem (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, Dicionário dos Símbolos, Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, p. 512.

No primeiro dia do ano ofereciam-se sacrifícios para Janus, particularmente um boi branco. Muito incenso era queimado por toda a cidade. Os magistrados recém-eleitos faziam procissões pela capital oferecendo sacrifícios a Júpiter e Janus. Mais tarde a Igreja Católica comemorou o primeiro dia de janeiro em homenagem a circuncisão de Cristo.

Foi início da perda desse significado mitológico ambivalente: o futuro só pode ser pensado em conjunto com o passado como ciclo de aprendizado.
Pensamento mítico e mágico: da antiguidade à mídia

O pensamento mítico sempre representou uma forma do homem fazer frente ao seus medos, uma forma de controle ou apaziguamento que, mais tarde, a Ciência aprimoraria com a lógica e a racionalidade.

O Tempo sempre foi assustador para o homem por estar associado à morte, à finitude. Por exemplo, para o poeta Charles Baudelaire (1821-1867) o Tempo é “o inimigo vigilante e funesto, o obscuro inimigo que corrói o coração”. Tempo é passagem, de um momento para outro mas, principalmente, da vida para a morte, da criação e destruição. Mitologias que personificavam esse drama cósmico como Janus era mais uma forma de apaziguamento desse mistério. Mas não apenas isso: também aprendizado e “purificação”. A lembrança e jamais o esquecimento.

Todo esse conjunto de simbolismos está presente de forma secularizada na atuais comemorações de réveillon de todo final de ano. Mas essa ambivalência foi finalmente perdida em nome de um pragmatismo otimista que envolve principalmente o esquecimento: “adeus ano velho, feliz ano novo!”.

E não só o esquecimento: também a regressão a um pensamento mágico animista através da forma como a grande mídia e o entretenimento repercutem simpatias e superstições que envolvem os rituais de passagem de ano: vestir-se de branco, cumprimentar pessoas segurando uma moeda, comer doze uvas verdes à meia noite, guardar a tampa de garrafa de champanhe e esconder em um lugar que ninguém ache, e assim ad infinitum – a ideia mágica de que cada evento mantém uma relação de contiguidade com algum outro evento, não restando lugar ao acaso.

Se o pensamento mágico-animista guardava uma relação instrumental de controle quase infantil, no pensamento mítico havia uma ambivalência: existia uma seminal tentativa de compreensão, de entender o porquê que vai muito além do como instrumental do pensamento mágico.

Hoje a mídia corporativa alia o esquecimento com o pragmatismo instrumental mágico, esvaziando toda a simbologia mítica dos antigos rituais não só da celebração da passagem de ano, mas da passagem do próprio Tempo.

E no caso da grande mídia brasileira, em tempo de crise econômica e desemprego crônicos, e vendo a necessidade de levantar a moral da patuleia fazendo as pessoas pensarem na falta de trabalho formal como oportunidade de empreendedorismo, todo esse ritual midiático de esquecimento e magia vem a calhar.

O leitor poderá perceber nesse momento como a mídia, mais do que nunca, vem celebrando apenas um dos rostos de Janus: aquele que olha para o futuro e se mantém cego para o passado. Um passado que deve urgentemente ser esquecido em nome de um otimismo em que tudo se resolverá como num passe de mágica.

Sem compreendermos o passado e, muito menos, figurar esse “universo em bloco atemporal”(passado, presente e futuro coexistindo aqui e agora), somos condenados a repetir os mesmos erros. E continuamos prisioneiros da ilusão de que a cada Ano Novo tudo seja magicamente renovado e recomeçassemos do zero.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

O grande inquisidor

 

 

O grande inquisidor

Trecho do romance
Os irmãos Karamazov
Fiodor Dostoievski

 

 

— É preciso, sob o ponto de vista literário, que o meu poema tenha um preâmbulo. A ação passa-se no século XVI; bem sabes que era costume, naquela época, fazer intervir nos poemas os poderes celestes. Não falo de Dante. Na França, os "clercs de la basoche" e os monges davam representações em que punham em cena Nossa Senhora, os anjos, os santos, Cristo e Deus. Eram espectáculos ingênuos. Na Nossa Senhora de Paris, de Vítor Hugo, o povo é convidado, no tempo de Luís XI, em Paris, e em honra do nascimento do Delfim, para uma representação edificante e gratuita: O Bom Juízo da Sagrada e Graciosa Virgem Maria. Neste mistério aparece a própria Virgem a pronunciar o seu "bom Juízo". No nosso país, em Moscow, antes de Pedro, o Grande, davam-se, de tempos a tempos, representações deste genêro, inspiradas sobretudo no Velho Testamento. Além disso, circulava uma grande quantidade de narrativas e de poemas em que figuravam, segundo as necessidades, os santos, os anjos, o exército celeste. Nos mosteiros traduziam-se e copiavam-se estes poemas, e compunham-se mesmo outros novos, tudo sob a dominação dos Tártaros. Existe, por exemplo, um pequeno poema, traduzido sem duvida do grego: A Virgem no Inferno com quadros duma audácia dantesca: a Virgem visita o Inferno, guiada pelo arcanjo S. Miguel, e vê os condenados e os seus tormentos; entre outros, há uma categoria muito interessante de pecadores: os do lago de fogo; mergulham no lago e nunca mais aparecem: são aqueles "de que até Deus se esquece" – expressão esta duma profundeza e duma energia notável. A Virgem, chorando, cai de joelhos diante do trono de Deus e pede o perdão de todos os pecadores que viu no Inferno, sem distinção; o Seu diálogo com Deus é dum interesse extraordinário; suplica, insiste e, quando Deus Lhe mostra os pés e as mãos do Filho furados pelos pregos e Lhe pergunta: "Como poderia eu perdoar aos seus verdugos?" – ordena a todos os santos, a todos os mártires, a todos os anjos que se ponham de joelhos como Ela e implorem a Deus que perdoe a todos os pecadores, sem distinção. Obtém, por fim, que cessem os tormentos, todos os anos, desde Sexta-Feira Santa ao Pentecostes, e os condenados, do fundo do Inferno, agradecem a Deus e gritam: "Senhor, a Tua sentença é justa!". Pois bem: o meu poeminha teria sido deste gênero, se o tivesse escrito nessa época. Deus aparece; não diz nada; só passa. Rodaram quinze séculos, depois que prometeu voltar ao Seu reino, depois que o Seu profeta escreveu: "Cedo voltarei; quanto ao dia e à hora, o Filho mesmo não os conhece; só o sabe meu Pai que está nos Céus", segundo as próprias palavras que pronunciou na Terra. E a humanidade espera-O com a mesma fé que outrora, fé mais ardente ainda, porque já quinze séculos passaram depois que o Céu deixou de dar penhores aos homens: "Crê no que te diz o coração; os Céus não dão penhores".
É verdade que se produziam então numerosos milagres: os santos realizavam curas maravilhosas, a Rainha dos Céus visitava certos justos, a acreditar no que narram as biografias. Mas o Diabo não dorme; a humanidade começa a duvidar da autenticidade destes prodígios. Neste momento, nasceu na Alemanha uma heresia terrível que negava os milagres. "Uma grande estrela, ardendo como um facho (a Igreja, evidentemente!) caiu sobre as fontes das águas, que se tornaram amargas". A fé dos fiéis redobrou. As lágrimas da humanidade elevam-se para Ele como outrora, e aguardam-n'O e amam-n'O e têm esperança n'Ele como outrora... Já há tantos séculos que a humanidade roga com ardor: "Senhor, digna-Te aparecer-nos", já há tantos séculos que para Ele vão seus gritos, que, na Sua misericórdia infinita, quis descer junto dos fiéis. Já antes tinha visitado, pelo que nos dizem os biógrafos, alguns justos, mártires e santos anacoretas. Entre nós, Pintchev, que acreditava profundamente na verdade das Suas palavras, proclamou que "curvado ao peso da Sua cruz e com humilde aparência, o Rei dos Céus te percorreu, ó terra natal, a abençoar-te toda".
Mas eis que se quis mostrar, por um instante ao menos, ao povo sofredor e miserável, ao povo mergulhado nos pecados, mas que O ama ingenuamente. A ação; passa-se na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias, para glória de Deus, se acendiam as fogueiras e "os medonhos hereges ardiam em soberbos autos-de-fé". Oh! não foi assim que prometeu voltar, no fim dos tempos, em toda a Sua glória, subitamente, "como um relâmpago que brilha de Oriente a Ocidente". Não; quis visitar Seus filhos, precisamente no lugar em que crepitavam as fogueiras dos hereges. Na Sua infinita misericórdia, volta para entre os homens com a forma que tinha durante os três anos de vida pública. Desce pelas ruas ardentes da cidade meridional em que, justamente na véspera, em presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais gentis damas da corte, o grande inquisidor mandou queimar uma centena de hereges, ad majorem gloriam Dei. Apareceu suavemente, sem se fazer notar, e, coisa estranha, todos O reconhecem; a explicação do motivo seria um dos mais belos passos do meu poema; atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à Sua passagem e segue-Lhe os passos. Silencioso, passa pelo meio da multidão com um sorriso de compaixão infinita. Tem o coração abrasado de amor, dos olhos se Lhe desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e nas almas despertam o amor. Estende-lhes os braços, abençoa-os, e uma virtude salutar emana do Seu contacto e até dos Seus vestidos. Um velho, cego de criança, grita dentre o povo: "Senhor, cura-me e ver-Te-ei"; cai-lhe uma escama dos olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão que Ele pisa. As crianças deitam-Lhe flores no caminho; todos cantam, todos gritam: Hossana! É Ele, deve ser Ele, não pode ser senão Ele! Pára no adro da Catedral de Sevilha, no momento em que trazem um caixãozinho branco, com uma menina de sete anos, filha única de um homem importante. A morta está coberta de flores.
— Vai ressuscitar a tua filha — gritam da multidão para a mãe cheia de lágrimas.
O padre que viera ao encontro do caixão olha com ar perplexo e franze o sobrolho. De repente, ouve-se um grito e a mãe lança-se-Lhe aos pés: "Se és Tu, ressuscita-me a filha! – e estende-Lhe os braços. O préstito pára, pousam o caixão nas lajes. Ele contempla-o com piedade e a Sua boca profere suavemente, uma vez mais: Talitha kum, e a menina levantou-se. Soergue-se a morta, senta-se e olha em torno, sorridente, com um ar de espanto; segura nas mãos o ramo de rosas brancas que lhe tinham posto no caixão. Na gente que assiste, há perturbação, gritos e choros. Neste instante, passa pela praça o cardeal grande inquisidor. É um velho alto, quase nonagenário, com uma face seca e olhos cavados, onde ainda brilha, porém, uma centelha. Não tem o vestuário pomposo com que no dia anterior se pavoneava diante do povo, enquanto se queimavam os inimigos da Igreja romana; voltou ao grosseiro burel. Os taciturnos ajudantes e a guarda do Santo Ofício seguem-no a respeitosa distância. Pára diante da multidão e observa-a de longe. Viu tudo, o caixão pousado perante Ele, a ressurreição da criança – e a face tornou-se-lhe sombria. Franze as espessas sobrancelhas e os olhos brilham-lhe com sinistro clarão. Aponta-O com o dedo e ordena aos guardas que O prendam. Tão grande é o seu poder e tão habituado está o povo a submeter-se, a obedecer-lhe, tremendo, que a multidão se afasta diante dos esbirros; estes, no meio de um silêncio de morte, seguram-n'O e levam-n'O. Como um só homem, o povo inclina-se até o chão diante do velho inquisidor que o abençoa sem dizer palavra e prossegue o seu caminho. Conduzem o Preso ao velho e sombrio edifício da Inquisição, metem-n'O em estreita cela abobadada. Termina o dia e chega a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está todo perfumado de loureiros e limoeiros. De súbito, nas trevas, abre-se a porta de ferro do calabouço e o grande inquisidor aparece, com um archote na mão. Está só e a porta se fecha por trás dele. Pára no limiar, considera longamente a Face Sagrada. Por fim, aproxima-se, pousa o archote na mesa e diz-Lhe:
— És Tu, és Tu? — E, como não recebe resposta, acrescenta rapidamente: — Não digas nada, cala-Te. De resto, que poderias Tu dizer? Já o sei de mais. Não tens o direito de juntar uma palavra ao que disseste outrora. Porque vieste incomodar-nos? Bem sabes que nos incomodas. Mas, sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem és e nem quero sabê-lo: és Tu ou somente a Sua aparência? Mas amanhã hei-de condenar-Te e serás queimado como o pior dos heréticos e o mesmo povo que hoje Te beijava os pés se precipitará amanhã, a um sinal meu, para deitar lenha na fogueira. Sabes tudo isso? Talvez — diz ainda o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos no Preso.
— Não compreendo bem o que isso quer dizer, Ivã — objetou Aliocha, que tinha escutado em silêncio. — É uma fantasia, um erro do velho, um estranho mal-entendido?
— Admite essa última hipótese — respondeu lvã, rindo — se o realismo moderno te tornou a esse ponto refratário ao sobrenatural. Seja como tu quiseres. É verdade, o meu inquisidor tem noventa anos e pode ser que a sua ideia lhe tenha perturbado o espirito já há muito. Pode ser, enfim, um simples delírio, o sonho de um velho antes do fim, com a imaginação excitada pelo corrente auto-de-fé. Mas, mal-entendido ou fantasia, que nos importa? O que é preciso notar somente é que o inquisidor revela finalmente o seu pensamento, descobre o que calou durante toda a sua carreira.
— E o Preso não diz nada? Contenta-se em olhar?
— Decerto. Não tem outra coisa a fazer senão calar-se. O próprio velho lhe faz observar que não tem o direito de juntar nem mais uma palavra ao que disse antigamente. Na minha humilde opinião, é esta talvez a característica fundamental do catolicismo romano: "Tudo foi transmitido por Ti ao papa, tudo depende agora do papa; não venhas incomodar-nos, antes do tempo, pelo menos." Tal é a doutrina deles; em qualquer caso, é a dos Jesuítas; encontrei-a nos seus teólogos. "Tens Tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?" — pergunta o velho que logo responde em lugar do Outro: "Não, não tens o direito de o fazer, porque esta revelação se juntaria à de outrora, e isso seria retirar aos homens a liberdade que tanto defendias na Terra. Todas as Tuas novas revelações infringiriam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, Tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, esta liberdade da fé". Não disseste Tu muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem: lá os viste, aos homens "livres" — acrescenta o velho, com um ar sarcástico. Sim, custou-nos caro — prossegue, olhando-O, com severidade, mas, enfim, sempre completámos em Teu nome esta obra. Foram necessários quinze séculos de rude trabalho para instaurar a liberdade; mas está pronto, e bem pronto. Não crês? Olhas-me com brandura, sem mesmo dares a honra de Te indignares? Mas é bom saberes que nunca os homens se julgaram tão livres como hoje, e, contudo, depuseram a nossos pés, humildemente, a sua liberdade. É esta a nossa obra, na verdade; é a liberdade que Tu sonhavas?
— Não compreendo outra vez — interrompeu Aliocha; é uma ironia dele, é uma troça?
— De modo nenhum! Gaba-se de terem, Ele e os Seus, suprimido a liberdade, com o objetivo de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala da Inquisição, bem entendido) que se pode pensar na felicidade dos homens. São, por natureza, uns revoltados; podem os revoltados ser felizes? Tu estavas prevenido, não Te faltaram conselhos, mas não Te importaste, puseste de parte o único meio de obter a felicidade para os homens; e foi uma sorte que, ao partires, nos tivesses transmitido a obra, nos tivesses prometido, nos tivesses solenemente concedido o direito de ligar e desligar; não poderias agora pensar em nos retirares esse direito. Porque vieste incomodar-nos?
— Que significa isso: "Não Te faltaram avisos e conselhos"?
— Mas é o ponto capital do discurso do velho.
"O Espírito terrível e profundo, o Espírito da destruição e do nada – continua ele – falou-Te no deserto e contam as Escrituras que Te "tentou". É verdade? E podiam ter-Te dito alguma coisa de mais penetrante que as três perguntas, ou, para falar como as Escrituras, as "tentações" que repeliste? Se jamais houve na Terra um milagre autêntico e retumbante, foi no dia dessas três tentações. Basta o fato de se terem formulado as três perguntas para que haja o milagre. Suponhamos que desapareciam das Escrituras, que era preciso reconstitui-las, imaginá-las de novo para as pôr lá outra vez, e que, para esse fim, se reuniam todos os sábios da Terra, homens de Estado, prelados, homens de ciência, filósofos, poetas, e se lhes dizia: "Imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas exprimam ainda, em três frases, toda a história da humanidade futura; achas que este areópago da sabedoria humana poderia imaginar alguma coisa de tão forte e de tão profundo como as três perguntas que te propôs então o poderoso Espírito? Elas provam, sozinhas, que se tratava do Espírito eterno e absoluto, não dum espírito humano transitório, porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história posterior da humanidade; são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Nesse momento, ninguém deu conta de nada, porque o futuro estava encoberto, mas hoje, como passaram quinze séculos, vemos que tudo fora previsto nas três perguntas e se realizou a tal ponto que é impossível juntar ou cortar uma só palavra.
"Decide Tu próprio quem tinha razão, Tu ou aquele que Te interrogava. Lembra-Te da primeira, pelo menos do sentido: querer ir pelo mundo com as mãos vazias, a pregar aos homens uma liberdade que a sua estupidez e a sua ignomínia natural os impedem de compreender, uma liberdade que lhes faz medo, porque nada há nem nunca houve tão intolerável para o homem e para a sociedade! Vês estas pedras neste árido deserto? Transforma-as em pães e a humanidade seguirá os Teus passos, como um rebanho dócil e reconhecido, mas sempre com medo que a Tua mão se retire e que o pão se lhe acabe.
"Mas não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, achando que ele era incompatível com a obediência comprada como os pães. Replicaste que o homem não vive só de pão; mas, sabes que em nome do pão terrestre o Espírito da Terra se levantará contra Ti, lutará e Te há-de vencer, e que todos o hão-de seguir gritando: "Quem se pode comparar com a besta que nos dá o fogo do Céu?" Hão-de passar os séculos e a humanidade proclamará, pela boca dos seus homens de ciência e dos seus sábios, que não há crimes e que, por conseguinte, não há pecados: só há famintos. "Alimenta-os e só depois podes exigir que sejam virtuosos!" Eis o que se há-de inscrever no estandarte da revolta que abaterá o Teu templo. Elevarão em vez dele um novo edifício, uma segunda torre de Babel que, sem dúvida, como a primeira, ficará por terminar; mas poderias ter poupado aos homens esta nova tentativa e mil anos de sofrimento. Hão-de vir procurar-nos, depois de se terem esforçado, durante mil anos, por construir a sua torre. Hão-de procurar-nos debaixo do chão como outrora, nas catacumbas em que estaremos escondidos (porque nos perseguirão de novo) e hão-de clamar: "Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do Céu nada nos deram." Então havemos de acabar a torre, porque para tal só é preciso comida, e nós os alimentaremos, em Teu nome, claro, e lho faremos crer. Sem nós, estarão sempre com fome. Nenhuma ciência lhes dará o pão enquanto estiverem livres; e hão-de depô-la a nossos pés, a essa liberdade, e dirão: "Fazei de nós escravos, mas alimentai-nos." Compreenderão, enfim, que a liberdade é inconciliável com o pão da Terra à discrição, porque nunca hão-de saber reparti-lo entre si! Também se hão-de convencer da sua impotência para se tornarem livres, porque são fracos e depravados, revoltados e nulos. Prometias-lhes o pão do Céu; e, vamos lá uma vez mais, acaso se pode ele comparar com o da Terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas Te hão-de seguir por causa deste pão, mas que há-de ser dos milhões e dos bilhões que não tiverem coragem de preferir o pão do Céu ao pão da Terra? Não serias Tu amigo senão dos grandes e dos fortes, para quem os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas que Te ama, serviria apenas de matéria explorável? Mas nós somos também amigos dos seres fracos. Embora depravados e revoltados, hão-de tornar-se finalmente dóceis. Hão-de admirar-nos e hão-de julgar-nos deuses por termos consentido, pondo-nos à frente deles, em assegurar a liberdade que temiam e em dominá-los; tal será, por fim, o seu medo de serem livres. Mas dir-lhes-emos que somos Teus discípulos, que reinamos em Teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque nessa altura não deixaremos que Te aproximes de nós. E é esta impostura que constituirá o nosso sofrimento, porque seremos obrigados a mentir. É este o sentido da primeira pergunta que Te fizeram no deserto e foi isto o que Tu repeliste em nome da liberdade que punhas acima de tudo. Continha, no entanto, o segredo do mundo. Se tivesses consentido no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade – indivíduos e coletividade – "diante de quem se inclinar?" Porque não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline. Mas não quer inclinar-se senão diante de uma força incontestada, que todos os seres humanos respeitam por um consentimento universal. Estas pobres criaturas atormentam-se na busca de um culto que reuna não somente alguns fiéis, mas no qual comunguem todos juntos, unidos pela mesma fé. Esta necessidade do comum na adoração é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar este sonho que tem havido os extermínios a gládio. Os povos forjaram deuses e desafiaram-se uns aos outros: "Abandona os vossos deuses, adorai os nossos; senão, ai de vós e dos vossos deuses!" E será assim até o fim do mundo, mesmo quando já os deuses tiverem desaparecido; prostrar-se-ão diante dos ídolos. Não ignoravas, não podias ignorar este segredo fundamental da natureza humana e, contudo, repeliste a única bandeira infalível que Te ofereciam e que teria curvado, sem contestação, todos os homens diante de Ti, a bandeira do pão terrestre; repeliste-a em nome do pão celeste e da liberdade! Vê o que fizeste depois, e sempre em nome da liberdade! Não há, torno a dizer-Te, anseio mais doloroso para o homem que o de encontrar o mais cedo possível um ser a quem entregue este dom da liberdade que o desgraçado traz ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é necessário dar-lhes a paz da consciência. O pão garantia-Te o êxito; o homem inclina-se diante de quem o dá, porque é coisa incontestada; mas logo que outro se assenhoreie da consciência humana, deixará o Teu pão para seguir quem cativou a sua consciência. Nisto tinhas Tu razão, porque o segredo da existência humana consiste, não somente em viver, mas também em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida do fim da existência, o homem prefere abandoná-la e, embora estivesse rodeado de montões de pão, antes seria capaz de suicidar-se do que de ficar na Terra. Mas, que aconteceu? Em lugar de Te apoderares da liberdade humana, foste alargá-la ainda mais!
Esqueceste que o homem prefere a paz, e até a morte, à liberdade de discernir o Bem e o Mal? Nada há de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas nada há também de mais doloroso. E, em vez de princípios sólidos que tivessem tranquilizado para sempre a consciência humana, escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo o que ultrapassa a força dos homens; agiste, portanto, como se os não amasses, Tu, que tinhas vindo para dar a vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em lugar de a confiscares e impuseste assim, para sempre, ao ser moral as agonias dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens que tivesses encantado. Em vez da dura lei antiga, o homem devia, daí por diante, discernir, de coração livre, o Bem e o Mal, não tendo para o guiar senão a Tua imagem; mas não previas que por fim repeliria e contestaria mesmo a Tua imagem e a Tua verdade, porque estava esmagado pelo fardo terrível da liberdade de escolher? Hão-de gritar que a verdade não estava em Ti; de outro modo, não os terias deixado em tão angustiosa incerteza, com tantos cuidados e tantos problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína do Teu reino; não deves, portanto, acusar ninguém dessa ruína. Era isto, contudo, o que Te propunham? Há três forças, as únicas que podem subjugar para sempre a consciência destes fracos revoltados: são o milagre, o mistério, a autoridade! A todas três afastaste, dando assim um exemplo. O Espírito terrível e fecundo transportara-Te ao pináculo do templo e dissera-Te: "Queres Tu saber se és Filho de Deus? Atira-Te abaixo, porque está escrito que os anjos O hão-de sustentar e segurar e não Se ferirá; ficarás então a saber se és o Filho de Deus e provarás assim a Tua Fé em Teu Pai." Mas repeliste a proposta e não Te precipitaste. Mostraste nessa altura uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, se desses um passo, se fizesses um gesto para Te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a Fé que n'Ele tinhas. Com grande alegria do tentador, ter-Te-ias despedaçado na Terra que vinhas salvar. Mas haverá muitos como Tu? Podes admitir por um instante que os homens teriam a força de resistir a semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, perante as questões capitais e dolorosas, entregar-se à livre decisão do espírito? Oh! Tu sabias que a Tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades, atingiria as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo o Teu exemplo, o homem se contentasse com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem repele Deus ao mesmo tempo que o milagre, porque é sobretudo o milagre o que ele busca. E, como não era capaz de passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios milagres, e inclina-se diante dos prodígios dum mago, dos sortilégios de uma feiticeira, mesmo que seja um revoltado, um herético, um ímpio confesso. Não desceste da cruz quando zombavam de Ti e Te gritavam por troça: "Desce da cruz e acreditaremos em Ti." Não o fizeste, porque não querias escravizar de novo o homem com um milagre; desejavas uma fé que fosse livre e não inspirada pelo maravilhoso. Era-Te necessário um livre amor, não os transportes dum escravo aterrado. Ainda aí fazias uma ideia elevada dos homens, porque são escravos, embora tenham sido criados rebeldes. Vê e ajuíza, após quinze séculos: quem elevaste até junto de Ti? Posso jurar-to: o homem é mais fraco e mais vil do que Tu julgavas. Acaso pode ele realizar o mesmo que Tu? A grande estima que tinhas pelos homens prejudicou a piedade. Exigiste-lhes demasiado, Tu que, no entanto, os amavas mais do que a Ti próprio! Estimando-os menos, ter-lhes-ias imposto fardo mais leve, mais de acordo com o Teu amor. São cobardes e fracos. Que importa que se insurjam agora contra a nossa autoridade e se orgulhem da sua revolta? É o orgulho dos rapazinhos de escola que se amotinaram e expulsaram o mestre. A alegria dos garotos acabará e custar-lhes-á cara. Derrubarão os templos e inundarão a Terra de sangue; mas perceberão por fim, essas estúpidas crianças, que não são mais do que fracos revoltados incapazes de manter a sua revolta durante muito tempo. Derramarão lágrimas absurdas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis troçar deles, com certeza. Hão-de chamá-Lo com desespero e esta blasfémia torná-los-á ainda mais infelizes porque a natureza humana não suporta a blasfémia e acaba sempre por se vingar. A inquietação, as perturbações, a infelicidade, eis aqui o que possuem os homens, depois de tudo que sofreste pela sua liberdade! O Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os que participavam da primeira ressurreição, e que havia doze mil para cada tribo. Para serem tão numerosos deviam ser mais do que homens, deviam ser quase deuses. Suportavam a Tua cruz e a vida no deserto, alimentados a gafanhotos e a raízes; decerto podes estar orgulhoso destes filhos da liberdade, do livre amor, do sublime sacrifício em Teu nome. Mas lembra-Te de que não eram senão alguns milhares e quase deuses; e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos homens, o não terem podido suportar o que suportam os fortes? Acaso tem culpa a alma fraca de não poder conter dores tão terríveis? Só vieste para os eleitos? Nesse caso, é um mistério, incompreensível para nós, e teríamos o direito de o pregar aos homens, de ensinar que não importam nem a livre decisão dos corações nem o amor, mas sim o mistério, a que se devem submeter cegamente, mesmo contra a aprovação da sua consciência. Foi o que nós fizemos. Corrigimos a Tua obra fundando-a sobre o milagre, o mistério, a autoridade. E os homens alegraram-se, porque eram de novo levados como um rebanho e ficavam livres da diva funesta que tais tormentos lhes causava. Não é verdade que tínhamos razão para proceder assim? Não era amar a humanidade, compreender a sua fraqueza, aliviando-lhe o fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com permissão nossa? Para que vieste, portanto, entravar a nossa obra? Para que Te conservas em silêncio e me fixas com o Teu olhar terno e penetrante? É preferível que Te zangues, porque não quero o Teu amor: eu mesmo não Te amo. Porque o hei-de dissimular? Sei a quem falo, conheço o que tenho a dizer-Te, vejo-o nos Teus olhos. Terei eu de Te esconder o nosso segredo? Mas talvez o queiras ouvir da minha boca; aqui o tens. Não estamos contigo, mas com ele, e já há muito tempo. Há exatamente oito séculos que recebemos dele esta última dádiva que Tu afastaste com indignação quando ele te mostrava todos os reinos da Terra; aceitámos Roma e o gládio de César e declarámo-nos os únicos reis da Terra, se bem que não tenhamos tido tempo até agora de ultimar a nossa obra. Mas, de quem é a culpa? O trabalho ainda está no princípio, está longe do termo e a Terra terá ainda muito que sofrer, mas nós atingiremos o nosso objetivo, seremos césares; pensaremos então na felicidade universal.
No entanto, poderias ter empunhado o gládio de César. Por que motivo afastaste esta última dádiva? Se seguisses o terceiro conselho do poderoso Espírito, realizarias tudo o que os homens procuram na Terra: um senhor diante de quem se inclinem, um guarda da consciência e o meio de finalmente se unirem em concórdia num formigueiro comum, porque a necessidade da união universal é o terceiro e último tormento da raça humana. A humanidade, no seu conjunto, mostrou sempre tendência para se organizar sobre uma base universal. Tem havido grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se têm elevado, têm sofrido mais, porque sentem mais fortemente do que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e os Gengiscão, que percorreram a Terra como furacões, encarnavam também, sem disso terem consciência, esta aspiração dos povos para a unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem pode dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem do pão? Tomamos o gládio de César e, ao fazê-lo, abandonamos-Te para o seguirmos. Oh! hão-de passar ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque é por isso que hão-de acabar, depois de terem edificado sem nós a sua torre de Babel. Então a besta virá ter connosco, de rastos, lamberá os nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue; e subir-lhe-emos para cima e levantaremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra "Mistério!" Só então a paz e a felicidade reinarão entre os homens. Tens orgulho dos Teus eleitos, mas são apenas um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. De resto, entre esses fortes destinados a serem os eleitos, quantos se cansaram de esperar, quantos levaram e continuarão a levar para outros pontos as forças do seu espírito e o ardor do seu coração, quantos acabarão por se insurgir contra Ti em nome da liberdade. Mas foste Tu quem a deu. Tornaremos os homens felizes, cessarão as revoltas e chacinas que são inseparáveis da Tua liberdade. Oh! havemos de persuadi-los de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando da sua liberdade em nosso favor. Pois bem! Diremos a verdade ou mentiremos? Eles próprios se convencerão de que falamos a verdade, porque se hão-de lembrar da escravatura e da perturbação em que os tinha lançado a Tua liberdade. A independência, o pensamento livre, a ciência, hão-de perdê-los num tal labirinto, hão-de pô-los em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes, furiosos, se destruirão a si próprios, outros, rebeldes, mas fracos, multidão de cobardes e de miseráveis, se hão-de arrastar aos nossos pés em clamores: "Sim, tínheis razão, só vós possuís o seu segredo e a vós regressamos; salvai-nos de nós mesmos!" Sem dúvida, ao receberem de nós os pães, verão bem que são os seus os que tomamos, os seus, ganhos pelo seu próprio trabalho, para os distribuirmos, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão, mas o recebê-lo das nossas mãos dar-lhes-à mais prazer do que o próprio pão. Hão-de lembrar-se de que outrora esse pão, fruto do seu trabalho, se lhes mudava em pedra nas mãos, ao passo que depois, quando voltaram a nós, as pedras se transformaram em pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto o não compreenderem, os homens serão infelizes. Diz-me: quem contribuiu mais para esta incompreensão? Quem dividiu o rebanho e o dispersou pelas estradas desconhecidas? Mas o rebanho se reunirá de novo, voltará à obediência e, então, será para sempre. Vamos dar-lhes uma felicidade humilde e branda, uma felicidade adaptada às criaturas fracas que eles são. Havemos de persuadi-los de que não se orgulhem, porque foste Tu, ao elevá-los, quem lho ensinou; havemos de provar-lhes que são débeis, que são umas lamentáveis crianças, mas que a felicidade infantil é a mais deliciosa. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e apertar-se-ão a nós, cheios de medo, como a ninhada que se abriga sob a asa da mãe. Hão-de sentir uma receosa surpresa e mostrar-se-ão orgulhosos da energia e da inteligência que nos terão permitido domar a inumerável multidão dos rebeldes. A nossa cólera fá-los-á tremer, encher-se-ão de timidez, e os olhos se lhes velarão de lágrimas como nas crianças e nas mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão com a mesma facilidade para o riso e para a alegria, para o radioso júbilo das crianças.
Havemos, certamente, de os obrigar ao trabalho, mas, nas horas de repouso, organizar-lhes-emos a vida como um jogo infantil, com cantos, coros e danças inocentes. Oh! permitir-lhes-emos até que pequem, porque são fracos, e por isso nos hão-de amar como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se o cometerem com permissão nossa; é por amor que os deixaremos pecar e sobre nós recairá o castigo. Hão-de querer-nos como a benfeitores que se apresentam diante de Deus com os pecados deles. Não terão para nós nenhuns segredos. Segundo o grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibiremos que vivam com as mulheres ou as amantes, que tenham filhos ou não os tenham; e hão-de escutar-nos com alegria. Hão-de submeter-nos os segredos mais dolorosos da sua consciência; resolver-lhes-emos todos os casos e hão-de aceitar a nossa decisão com alegria, porque lhes poupará o grave cuidado de escolherem por si próprios, livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, excepto uns cem mil, os dirigentes, excepto nós, os depositários do segredo. Os felizes hão-de contar-se por biliões e haverá cem mil mártires sob a carga do conhecimento maldito do Bem e do Mal. Morrerão pacificamente, suavemente se extinguirão em Teu nome, e no Além nada encontrarão senão a morte. Mas guardaremos o segredo: embalá-los-emos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no Céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para seres como eles. Profetiza-se que Tu voltarás para vencer de novo, rodeado dos eleitos, poderosos e altivos; e nós diremos que só se salvaram a si próprios, ao passo que nós salvámos o mundo. Pretende-se que a pecadora, montada na besta e tendo na mão a taça do martírio, será desonrada; que os fracos se revoltarão de novo, lhe rasgarão a púrpura e desnudarão seu corpo "impuro". Então eu me levantarei e mostrarei os biliões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, os que tivermos tomado sobre nós as faltas deles, para sua felicidade, erguer-nos-emos diante de Ti, dizendo: "Não Te receio; também estive no deserto, também vivi de gafanhotos e de raízes; também abençoei a liberdade com que favoreceste os homens, também me preparava para figurar entre os Teus eleitos, os poderosos e os fortes, com um ardente desejo de "completar o número". Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei, para me juntar aos que corrigiram a Tua obra. Abandonei os altivos, regressei aos humildes, para os tornar felizes. Sucederá o que Te disse e edificar-se-á o nosso império. Repito-Te: amanhã, a um sinal que eu fizer, verás o dócil rebanho trazer brasas para a fogueira a que hás-de subir por teres vindo entravar a nossa obra. Se alguém mereceu mais que todos a fogueira, esse alguém és Tu. Amanhã, queimar-Te-ei. Dixi."
Ivã parou. Tinha-se exaltado com o discurso; quando acabou, apareceu-lhe um sorriso nos lábios.
Aliocha tinha escutado em silêncio, com extrema emoção. Por várias vezes tinha querido interromper o irmão, mas tinha-se contido.
— Mas... é absurdo! — exclamou, corando. — O teu poema é um elogio a Jesus, não é uma censura, como querias. Quem vai acreditar o que disseste da liberdade? Será assim que temos de a entender? É essa a concepção da Igreja ortodoxa? É Roma, e nem toda ainda, são os piores elementos do catolicismo, os inquisidores, os Jesuítas. Não existem personagens fantásticas como o teu inquisidor. Quais são esses pecados dos outros que ele toma sobre si? Quais são esses detentores do mistério que se carregam de maldições para bem da humanidade? Quando é que se viu coisa semelhante? Conhecemos os Jesuítas, diz-se muito mal deles; mas são semelhantes aos teus? De modo algum! É simplesmente o exército romano, o instrumento da futura dominação universal, tendo à frente um imperador, o pontífice romano... Eis o ideal que eles têm; não há aí nenhum mistério, nenhuma tristeza sublime... a sede de reinar, a vulgar cobiça dos vis bens terrestres... uma espécie de futura servidão em que deles seriam todos os bens de raiz... eis tudo. Talvez mesmo não acreditem em Deus. O teu inquisidor não é mais do que uma ficção.
— Espera, espera — disse-lhe rindo lvã. — Como tu te exaltas! Uma ficção? Seja, evidentemente. No entanto, crês tu que todo o movimento católico dos últimos séculos seja inspirado somente pela sede do poder, que não tenha em vista senão os bens terrestres? Não é o Padre Paisius quem te ensina isso?
— Não, não, pelo contrário. O Padre Paisius falou-me uma vez segundo as tuas vistas... mas não era precisamente a mesma coisa.
— Aí está uma informação preciosa, apesar do teu "não era precisamente a mesma coisa". Mas por que razão os Jesuítas e os inquisidores se teriam unido só em vista da felicidade terrestre? Não se poderá encontrar entre eles um mártir que tenha um nobre sofrimento e que ame a humanidade? Supõe que entre esses seres, que não anseiam por outra coisa senão pelos bens materiais, há um só como o meu velho inquisidor que viveu de raízes no deserto e se bateu por vencer os sentidos, para se tornar livre, para atingir a perfeição; no entanto, sempre tem o amor da humanidade. De repente, vê tudo claro, reconhece que é medíocre felicidade a de chegar a uma liberdade perfeita, quando milhões de criaturas continuam para sempre na desgraça, fracas de mais para usarem da sua liberdade, que estes débeis revoltados nunca poderão acabar a sua torre e que não foi para tais gansos que o grande idealista sonhou a sua harmonia. Depois de ter compreendido tudo isto, o meu inquisidor volta para trás e junta-se às pessoas inteligentes. É impossível?
— Mas juntar-se a quem? A que pessoas inteligentes? — gritou Aliocha, quase zangado. — Não são tal inteligentes, não têm mistérios nem segredos... O ateísmo, eis o segredo. O teu inquisidor não crê em Deus.
— Bem, suponhamos que é assim. Adivinhaste, finalmente. É isso mesmo, todo o segredo está aí. Mas não é um sofrimento, pelo menos para um homem como ele que no deserto sacrificou a sua vida ao seu ideal e não deixou de amar a humanidade? Ao declinarem-lhe os dias, convence-se claramente de que só os conselhos do grande e terrível Espírito poderiam tomar suportável a existência dos débeis revoltados, "esses seres de aborto, criados por troça". Compreende que deve escutar o Espírito profundo, este Espírito de morte e de ruína e, para o fazer, admitir a mentira e a fraude, levar conscientemente os homens para a morte e para a ruína, enganando-os durante todo o caminho, para lhes não revelar onde os levam e para que os pobres cegos tenham a ilusão da felicidade. Nota isto: a fraude em nome de Aquele em quem o velho acreditou ardentemente durante toda a sua vida! Não é isto uma infelicidade? E se houver alguém, se houver um só homem semelhante à frente deste exército "ávido do poder apenas para os vis bens", não bastará isto para que se dê uma tragédia? Mais ainda: basta um único chefe semelhante para encarnar a verdadeira ideia directriz do catolicismo romano, com os seus exércitos e os seus jesuítas, a ideia superior. Declaro-te que estou convencido de que nunca faltou um homem deste tipo à frente do movimento. Quem sabe? Talvez haja alguns entre os pontífices romanos! Quem sabe? Talvez que esse maldito velho que ama tão obstinadamente a humanidade, à sua maneira, exista ainda agora em vários exemplares, não por efeito do acaso, mas sob a forma de um entendimento, duma liga secreta, organizada já há muito tempo para guardar o mistério, ocultá-lo aos desgraçados e aos fracos para os tornar felizes. Deve seguramente ser assim; é fatal. Imagino mesmo que a maçonaria tem um mistério análogo na base da sua doutrina e que deve ser por isso que os católicos odeiam tanto os mações; vêem neles concorrentes, vêem neles uma dispersão da ideia única, quando deve existir apenas um rebanho com um único pastor. Mas basta: não quero ter, com esta defesa do meu pensamento, o ar de um autor que não suporta a tua crítica.
— Talvez tu sejas também mação — disse de súbito Aliocha. — Não acreditas em Deus — continuou com profunda tristeza. Tinha-lhe parecido também que o irmão o contemplava com ar de troça. — Como acaba o teu poema? — prosseguiu ele, baixando os olhos. — Não há mais nada?
— Há. O fim que eu tinha pensado era este: O inquisidor cala-se, espera um momento a resposta do Preso. O Seu silêncio oprime-o. O Cativo escutou-o sempre fixando nele o olhar penetrante e calmo, visivelmente decidido a não lhe responder. O velho gostaria de que Ele lhe dissesse alguma coisa, mesmo que fossem palavras amargas e terríveis. De repente, o Preso aproxima-se em silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios exangues. Mais nenhuma resposta. O velho tem um sobressalto, mexe os lábios; vai até à porta, abre-a e diz: "Vai e nunca mais voltes... nunca mais." E deixa-o ir, nas trevas da cidade. O Preso vai.
— E o velho?
— O beijo queimou-lhe o coração, mas persiste na sua Idéia.
 

contato   biblioteca   discussões   digressões   ensaios   rubaiyat   contos   textos   poemas   conexões   ao cubo