quinta-feira, 28 de março de 2019

Psicologias do fascismo Aula 2

Psicologias do fascismo
Aula 2
Na aula de hoje, começaremos a leitura de Psicologia das massas e análise do Eu,
escrito em 1921 por Sigmund Freud. Como havia dito anteriormente, a escolha em começar
um curso intitulado “psicologias do fascismo” com esse texto se justifica pelo seu caráter
fundador. O texto de Freud consolida um modelo de abordagem dos fenômenos de massa
que visa descrever, em um movimento sobreposto, o funcionamento social regressivo de
grupos, instituições e os processos de formação do indivíduo moderno. Daí o título peculiar
que articula “psicologia das massas” e “análise do Eu”. Esta articulação permite a Freud
fazer uma verdadeira crítica da psicologia social até então existente que inverte
completamente seus objetos e seu horizonte. Tal crítica nos leva à compreensão das
regressões imanentes a nossa vida institucional. Esse modelo de análise aparecerá, à
posteridade, como profícuo a fim de compreender fenômenos como o fascismo e outras
figuras do totalitarismo. Pois ele permite uma análise no interior da qual democracia liberal
e fascismo estarão em linha de contato, na qual o fascismo será uma latência da democracia
liberal. O que proponho nos nossos próximos encontros é seguir a argumentação freudiana,
apresentando a teses principais de seu livro.
Antes, lembremos como a reflexão política de Freud conhece três obras
fundamentais. Cada uma delas aborda uma dimensão do problema do político e tecem entre
si relações profundas. A primeira é Totem e tabu, livro que visa apresentar uma tese a
respeito dos fundamentos antropológicos do político através do mito do assassinato do pai
da horda primitiva e da produção da culpabilidade e da melancolia como afetos políticos
centrais. A segunda é exatamente Psicologia das massas como sua crítica da psicologia
social e sua centralidade nos processos verticais de identificação, como veremos nas
próximas aulas. Por fim, a última é Moisés e o monoteísmo, com sua maneira peculiar de
fornecer uma crítica aos fundamentos teológico-políticos do poder. Nós iremos ver esta
obra no último módulo de nosso curso.
Freud, leitor de Le Bon
A oposição entre psicologia individual e psicologia social e das massas, que à
primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de sua agudeza se a
examinamos mais detidamente. É certo que a psicologia individual se dirige ao ser
humano particular, investigando os caminhos pelos quais ele busca obter a
satisfação de seus impulsos instintuais, mas ela raramente, apenas em condições
excepcionais, pode abstrair das relações deste ser particular com os outros
indivíduos. Na vida psíquica do ser individual, o Outro é via de regra considerado
enquanto modelo, objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual
é também desde o início, psicologia social, num sentido ampliado, mas inteiramente
justificado1.
1 FREUD, Psicologia das massas, São Paulo: Companhia das Letras, p. 14Essa introdução a Psicologia das massas deve ser lida, principalmente, como uma nota
metodológica. Freud insiste de maneira reiterada na impossibilidade de se estabelecer
distinções estritas entre psicologia individual e psicologia social. O que só pode significar
que uma clínica da subjetividade será, necessariamente, uma clínica de fenômenos sociais.
Pois não há fato psicológico legível a partir de uma perspectiva solipsista, os modos de
relação a si e a própria constituição de uma noção identitária como o si-mesmo é
dependente destes fenômenos sociais que são: “as relações dos indivíduos aos seus pais,
irmãos e irmãs, a seu objeto de amor, a seu professor e a seu médico”2. Freud chega mesmo
a afirmar que a distinção entre atos psíquicos sociais e atos psíquicos narcísicos deve ser
situada no interior da psicologia individual, já que não há ato psíquico narcísico, ou seja,
não há amor de si que não se oriente a partir da internalização de uma teleologia das
relações sociais. O que não poderia ser diferente já que identidades individuais são
produções relacionais, as próprias instâncias da vida psíquica são internalizações de
disposições sociais de conduta. Proposições que podem nos levar à interpretação de Etienne
Balibar, para quem: “a própria individualidade é um caso particular da formação de
massa”3.
Mas há de se saber como compreender tais estruturas de relações sociais. Neste
sentido, a grande crítica de método que Freud faz a psicologia social de seu tempo pode ser
sintetizada através da noção de abstração. Ao tomar o indivíduo isolado como “membro de
uma linhagem, de um povo, uma casta, uma classe ou uma instituição”, a psicologia social
passa por cima da estruturação sistêmica dos modos de interação social, ou seja, deste
modo de interação social que vai progressivamente se abrindo dos primeiros contatos entre
mãe e bebê à família, às instituições sociais e ao Estado. Desenvolvimento progressivo que
implica que experiências primeiras de interação no interior do núcleo familiar servirão de
base para desenvolvimento subsequentes. Isto é importante não para assumir alguma forma
de familiarismo, mas para insistir na dimensão instauradora do conflito. Pois a família é,
antes de qualquer coisa, um núcleo produtor de conflitos e de ambivalências.
Por outro lado, note-se que Freud não ignora a dependência das configurações
familiares a estruturas sociais mais amplas. No entanto, quem diz dependência não diz
subsunção simples. Por isto Freud afirma: de nada adiante tentar compreender a
configuração dos processos de interação social postulando algum princípio abstrato como
“pulsão gregária”, “pulsão social”, “group mind” etc. Devemos compreender como modos
elementares de interação influenciam regimes de aplicação de princípios sociais mais
gerais. Daí porque Freud termina insistindo: “Nossas expectativas são orientadas por duas
possibilidades: que a pulsão social não seja nem originária nem indecomponível e que os
inícios de sua formação possam ser encontrados em um círculo mais restrito, como por
exemplo na família”4.
A partir de tais considerações, Freud parte para uma certa revisão de literatura que
ocupará os próximos dois capítulos. Tal revisão começa com o livro de Gustave Le Bon, La
psychologie des foules, editado em 1895. A razão não deve ser procurada apenas no caráter
fundador deste livro que, aos olhos de muitos, aparece como a inauguração da psicologia
social e como a realização clássica dos princípios de uma sociologia das massas de forte
caráter conservador. De fato, Freud encontra uma problemática com a qual ele compartilha,
2 FREUD, Psicologia das massas - introdução
3 BALIBAR; “Psychologie des masses et analyse du moi: le moment transindividuel”. p. 42
4 FREUD, Psicologia das massas - introduçõaembora marcado por um encaminhamento que lhe é estranho. Em seu livro, Le Bon começa
afirmando:
As massas sempre desempenharam um papel importante na história, mas nunca tão
considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das massas, substituindo a
ação consciente dos indivíduos, representa uma das características da idade atual5.
Esta consciência do advento das massas à cena do político nas democracias modernas,
advento que implica uma política de mobilização capaz de romper com o impéris seguro
das leis e instituições, é o pano de fundo sócio-histórico das reflexões de Le Bon. Todo seu
livro é uma tentativa de compreender o advento das massas enquanto ator político como
uma regressão no sentido psicológico do termo. Daí porque ele insistirá que uma massa
psicológica seria dotada de uma unidade mental resultante do desaparecimento da
personalidade consciente dos indivíduos Le Bon chega a usar a idéia de hipnose para
insistir no caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos no interior da massa.
Freud aceitará tal perspectiva ao afirmar que o comportamento da massa não pode ser visto
como a somatória dos comportamentos individuais:
Devemos explicar o surpreendente fato de que este indivíduo sinta, pense e aja de
uma maneira totalmente distinta daquela que esperávamos desde que entra em uma
multidão de homens (Menschenmenge) que adquiriu a qualidade de uma massa
psicológica6.
Le Bon compreende tal mudança de comportamento como resultante do fato de: que
“nosso atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado sobretudo por
influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de nossos atos, encontram-se
causas sociais ignoradas por nós”7. Tais causas resultantes de sedimentações que compõe
“a alma de um povo” formariam um inconsciente coletivo responsável pela constituição da
unidade mental da massa. Daí a afirmação que a psicologia das massas seria uma
psicologias de processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização”8.
Esta comparação entre comportamento social e hipnose já havia sido abordada por
Gabriel Tarde em um livro que apareceu cinco anos antes que este de Le Bon, As leis da
imitação. Tarde, visto também como um nome importante na constituição da psicologia
social e recuperado recentemente principalmente devido ao interesse de Gilles Deleuze por
sua obra, insistia no papel fundamental da imitação na estruturação do vínculo social: “o ser
social, enquanto social, é por essência imitador. A imitação desempenha nas sociedades um
papel análogo àquele da hereditariedade nos organismos e da ondulação nos corpos
brutos”9. No entanto, esta imitação fundamental para a reprodução do vínculo social seria
um fenômeno, em larga medida, desenvolvido de maneira inconsciente. Daí porque Tarde
irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo”10, como alguém em
5 LE BON, Psychologie des foules, préface
6 FREUD, Psicologia das massas – capítulo II
7 LE BON, idem, p. 22
8 idem, p. 24
9 TARDE, Les lois de l ́imitation, p. 12
10 idem, p. 84estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos (sonambulismo, hipnose, ação
social) encontramos a ilusão de ter ideias sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
Mas, a fim de dar conta deste esquema de reprodução social através da imitação,
Tarde precisa insistir no papel formador das relações de autoridade e de prestígio. Daí
afirmações como:
Foi necessário a fortiori no início de toda sociedade antiga uma grande autoridade
exercida por alguns homens soberanamente imperiosos e afirmativos. Foi através do
terror e da impostura, como se diz normalmente, que eles reinaram? Não, esta
explicação é claramente insuficiente. Eles reinaram graças a seu prestígio11.
A fim de explicar o que entende por prestígio, por uma certa forma de admiração capaz de
sustentar relações sociais, Tarde faz então apelo às relações próprias a hipnose. Segundo
ele, o hipnotizado tem uma “força potencial de crença e de desejo, imobilizada em
lembranças de toda natureza, adormecidas mas não mortas”12. O hipnotizador será aquele
capaz de, através do seu prestígio, atualizar tal força potencial, atualizar este desejo
imobilizado em lembranças de toda natureza. Ele será aquele capaz de colocar-se como
sujeito que saber a respeito da verdade do meu desejo. O que Tarde não está longe de
aceitar ao dizer: “Obedecer alguém não é sempre querer o que ele quer ou parece
querer?”13.Tal relação de hipnose social baseada em relações assimétricas de prestígio
poderia nos explicar aquilo que Tarde chama de: “a passividade imitativa do ser social”.
Uma passividade que leva Tarde a dizer que a “sociedade é a imitação e a imitação é uma
espécie de sonambulismo”14.
Freud compreenderá fenômenos como a mútua sugestão dos indivíduos e o prestígio
do líder (poderíamos acrescentar aqui o carisma) como necessitando de explicações. E para
tanto ele mobilizará o conceito de “libido”. Ou seja, as relações de autoridade e de coesão
no interior da massa são expressões de vínculos libidinais inconscientes, vínculos esses que
Freud não teme em remeter ao conceito platônico de “Eros”. Mas a respeito de tais
vínculos, Freud dirá:
Todas essas tendências seriam expressão dos mesmos impulsos instintuais que nas
relações entre os sexos impelem à união sexual, e que em outras circunstâncias são
afastados dessa meta sexual ou impedidos de alcançá-la, mas sempre conservam
bastante da sua natureza original, o suficiente para manter sua identidade
reconhecível (abnegação, busca de aproximação)15.
Ou seja, as relações políticas e a constituição das massas são uma questão de atração
libidinal, de amor. Não há relação vertical à autoridade e horizontal aos membros da massa
que não seja constituída a partir da dinâmica das relações amorosas, com sua produção de
objeto de amor e suas modalidades de identificação. Não há sujeição ou submissão sem
amor, é o que lembra Freud. Amor que não desconhece a força de atração dos corpos, a
11 idem, p. 86
12 idem, p. 87
13 idem, p. 97
14 idem, p. 97
15 FREUD; Psicologia das massas, op. cit., p. 43afecção dos corpos e suas modalidades de prazer. Afecção que, mesmo deslocada, tem sua
inteligibilidade nos mecanismos sexuais de procura de prazer e gozo. Há um gozo das
massas e é ele que precisa ser compreendido caso queiramos entender a natureza do
político.
Se voltarmos a Psicologia das massas e análise do Eu, veremos Freud se serve
deste esquema a fim de afirmar que. no interior da massa, o indivíduo poderia se livrar dos
recalques de suas moções pulsionais, o que acarretaria a desaparição dos sentimentos de
responsabilidade e da consciência moral. Essa supressão do recalque aproxima os
fenômenos de massa e as formações do inconsciente. Mas ele logo insiste em operar uma
distinção extremamente significativa: o inconsciente de Le Bon, diz Freud, este
inconsciente resultante da sedimentação de heranças arcaicas não é o inconsciente
psicanalítico fundado em operações de recalque:
Nós não negamos que o núcleo do Eu (o Isso, como nomeamos mais tarde), ao qual
a “herança arcaica” da alma humana pertence, seja inconsciente, mas nós
distinguimos um ‘recalque inconsciente” que é uma parte desta herança. Este
conceito de recalque falta em Le Bon16.
Quer dizer, falta uma elaboração clara da natureza dos conflitos psíquicos como motor das
experiências sociais que podem aparecer como herança de experiências históricas. A
verdadeira questão é: quais os conflitos que levam sujeitos a se constituírem em uma massa
que se sustenta através da implementação de exigências libidinais? Esses conflitos
psíquicos, cuja compreensão exige a mobilização dos conflitos inerentes à constituição do
Eu, com suas dinâmicas de identificação, com suas modalidades de sujeição psíquica,
explicam principalmente a natureza das relações sociais de autoridade. Por isto,
contrariamente a Le Bon, Freud não se interessa pelas dinâmicas revolucionárias, já que os
processos revolucionários são exatamente aqueles nos quais as figuras de autoridade são
depostas.
A este respeito, lembremos como alguns anos antes de Freud escrever Psicologia
das massas e análise do eu, um de seus mais antigos colaboradores, Paul Federn, escrevera
Sobre a psicologia da revolução: a sociedade sem pais (1919). Neste texto, que Freud
certamente conhecia pois seus argumentos principais foram apresentados na Sociedade das
quarta-feiras, Federn via no fim do Império Austro-Húngaro e na queda da figura do
Imperador, assim como na vitória da Revolução Soviética, a possibilidade do advento de
sujeitos políticos que não seriam mais “sujeitos do Estado autoritário patriarcal”. Para tanto,
tais sujeitos deveriam apelar à força libidinal das relações fraternas, relações distintas e que
não se derivam completamente da estrutura hierárquica de uma relação com o pai que até
então havia marcado a experiência política de forma hegemônica. Para que novas formas de
identidades coletivas fossem possíveis, não bastaria apenas transmutar a identificação com
o pai em recusa de seu domínio. Seria necessária a existência de um modelo alternativo de
identificações que se daria de maneira horizontal e com forte configuração igualitária. Daí
uma afirmação maior como: “Dorme em nós, igualmente herdada ainda que em uma
intensidade inferior ao sentimento de filho, um segundo princípio social, este da
comunidade fraterna cujo motivo psíquico não está carregado de culpabilidade e temor
16 FREUD, Psicologia das massas, capítulo IIinterior. Seria uma liberação imensa se a revolução atual, que é uma repetição das revoltas
antigas contra o pai, tiver sucesso”17.
O modelo de Federn, baseado na defesa de que as relações fraternas poderiam
constituir um “segundo princípio social” relativamente autônomo e não completamente
dedutível das relações verticais entre filhos e pais, inscreve-se no horizonte de reflexões
sobre estruturas institucionais pós-revolucionárias. A partir de tal modelo, Federn tentará
pensar o fundamento libidinal de organizações políticas não-hierárquicas como, por
exemplo, os sovietes e os conselhos operários que procuravam se disseminar na nascente
república austríaca graças às propostas dos social-democratas. A sociedade sem pais a que
Federn alude tem a forma inicial de uma república socialista de conselhos operários.
É fato que Freud não seguirá esta via. Para tanto, seria necessária a defesa de uma
dimensão de relações intersubjetivas naturalmente cooperativas baseada na reciprocidade
igualitária. Tal dimensão não existe nos escritos de Freud que, neste sentido, estaria mais à
vontade lembrando da agressividade própria às relações fraternas com suas estruturais duais
baseadas em rivalidade. Por isto, as relações de cooperação tipificadas em confrarias ou
comunidades de iguais só podem se consolidar, dentro de um paradigma freudiano,
apoiando-se na exclusão violenta da figura antagônica. Isto talvez explique porque, mesmo
dizendo-se interessado pelos desdobramentos da revolução bolchevique, Freud pergunta-se
sobre o que os soviéticos farão com sua violência depois de acabarem com seus últimos
burgueses.
Neste sentido, não é um mero acaso que os dois exemplos privilegiados de massa
para Freud não sejam, como poderíamos esperar, eclosões revolucionárias (como a Comuna
de Paris, para Le Bon), mas o exército e a igreja: duas instituições que não pareceriam, a
primeira vista, exemplos de regressão social. Pois se trata de afirmar que a lógica da
regressão social, esta mesma que anteriormente foi usada para dar conta da tríade selvagem,
criança, neurótico e que agora se vê acrescida da massa, é peça constitutiva que atua no
cerne de nossas instituições (e não simplesmente nas força que visam desestabilizá-las). Se
levarmos em conta que estamos a falar de um cidadão do finado Império Austro-Húngaro,
podemos imaginar que esta forma de falar sobre o poder teológico-político da igreja e as
forças armadas é uma maneira metonímica de se referir ao estado.
Ao falar sobre a igreja e as forças armadas, Freud privilegia a natureza constitutiva
das relações verticais ao líder. No caso da igreja, já que o exemplo freudiano vem da igreja
católica, o líder é Cristo. No caso das forças armadas, o general. As relações entre os
membros e o líder constitui uma relação na qual todos estão igualmente distantes do centro,
Por outro lado, é o vínculo libidinal ao líder que constitui tais massas, isto a ponto do
desaparecimento do líder provocar ou pânico provocado pela anulação das ligações mútuas
ou uma desintegração que libera a violência generalizada contra aquele que aparece como o
outro.
Isto nos leva a dois fatores. O primeiro deles é a relação entre identidade e
identificação no interior dos fenômenos sociais. A proposição de Freud se refere a uma tese
sobre o processo de formação de identidades coletivas. Uma identidade coletiva precisa de
uma identificação vertical para se constituir. Ela precisa de uma relação à representação de
soberania. Essa é uma tese forte e polêmica, mas lembremos que tal identificação vertical
não precisa necessariamente ser um líder. Ela pode se referir a um princípio diretivo, uma
17 FEDERN, Paul; “La société sans père”, In: Figures de la psychanalyse 2/2002 (n. 7), pp. 217-238ideia, uma representação, uma organização. Mas, para Freud, tais identificações verticais
devem necessariamente existir.
Por outro lado, vemos como como as massas se organizam contra dois fenômenos: o
pânico e violência sem direção já que, como lembra Freud, não há religião do amor sem
violência; “Uma religião, mesmo que se denomine a religião do amor, tem de ser dura e
sem amor para com aqueles que não pertencem a ela. No fundo, toda religião é uma religião
do amor para aqueles que a abraçam, e tende à crueldade e à intolerância para com os não
seguidores”18. Nesta proposição, está sintetizado o fundamento do antagonismo político
através da consolidação de relações amigo-inimigo. As massas são constituídas como
mecanismos de defesa contra o pânico vindo da angústia da ausência de identificação,
assim como da defesa contra a desintegração da gestão das relações antagonistas entre
amigo e inimigo.
Problemas de imagens
Um outro ponto central que leva Freud a se aproximar de Le Bon enuncia-se na
afirmação: ‘A massa pensa por imagens que se chamam (hervorrufen) por associação, tal
como acontece no homem isolado quando este dá livre curso a sua imaginação”19. Este
pensar por imagens, pensar que segue a lógica da associação com suas regras de
contiguidade e semelhança, pensar que explicaria fenômenos como o contágio social, a
catarse e a sugestão, seria o ponto de partilha entre massa, pensamento selvagem,
pensamento infantil e neurose:
Os raciocínios inferiores das massas são, como os raciocínios elevados, baseados
em associações: mas as idéias associadas pelas massas tem, entre elas, apenas
ligações aparentes de semelhança ou de sucessão. Elas encadeiam-se à maneira das
idéias de um Esquimó que, sabendo por experiência que o gelo, corpo transparente,
dissolve na boca, conclui que o vidro, corpo igualmente transparente, deve dissolver
na boca também; ou do selvagem que acredita adquirir a bravura de um inimigo
corajoso ao comer seu coração, ou do operário que, explorado pelo patrão, conclui
que todos os patrões são exploradores20.
Esta noção assume a distinção entre imagem e conceito, entre a abstração própria ao
conceito e a contiguidade indevida das imagens. No entanto, percebemos novamente o
deslocamento operado por Freud em idéias relativamente correntes de sua época. O modo
de pensar que Freud descreve é aquele próprio aos processos primários do inconsciente.
Neste sentido, eles não são arbitrários e vinculados ao erro, mas descrevem processos de
encadeamento de representações absolutamente necessários do ponto de vista da dinâmica
do desejo. Eles permitem a compreensão dos conflitos e desenvolvimentos que dão
inteligibilidade a uma função intencional central como o desejo. Por outro lado, sendo as
massas e as instituições o espaço de desdobramento de processos primários, chega-se
rapidamente à conclusão de que a análise não deverá se basear nas disposições normativas
18 FREUD, Psicologia das massas, op. cit., p. 14
19 idem,
20 LE BON, idem, pp. 44-45imanentes ao horizonte de racionalidade social. Há uma dinâmica inconsciente que deve ser
desvelada e na qual se encontra o verdadeiro fundamento da coesão social.
Por outro lado, vemos como a figura de um pensar por analogias, por similitudes
aparece como pensar defeituoso que ignora os princípios elementares da lógica e do
entendimento. Foucault e Adorno, por razões distintas, insistiram bastante neste ponto:
como a razão moderna impôs à mimesis como figura de um pensar exilado das exigências
de racionalidade do entendimento. Desde o descrédito cartesiano à imaginação, o que tem
afinidade mimética é negado enquanto algo dotado de potência cognitiva. Vale sempre a
pena lembrar que a potência disruptiva da mimesis em sociedades pré-modernas implica na
implementação social de processos de diferenciação que não são solidários da entificação
do princípio de identidade, como é o caso no pensamento próprio ao conceito moderno de
razão.
Por enquanto, devemos lembrar como Freud identifica o ponto cego das teorias de
Le Bon, assim como as teorias de McDougall, na reflexão sobre a natureza do líder das
massas. De nada adiante, segundo Freud, tentar compreender o poder da liderança (seja
uma pessoa, uma idéia ou instituição) a partir de conceitos vagos como prestígio ou
carisma. Mas antes de aprofundar a natureza da relação entre indivíduo e líder da massa,
Freud passa à distinção de McDougall entre massas organizadas (group) dotadas de
singularidade e responsáveis por processos de individuação e massas desorganizadas e
efêmeras (crowd) que parecem impedir toda e qualquer individuação. O fato significativo é
que Freud irá privilegiar o primeiro caso como o caso paradigmático. Ou seja, de fato, a
tradução inglesa de Strachey não estava totalmente incorreta: o diagnóstico freudiano é
também uma group psychology. O que deixa a crítica freudiana ainda mais próximo de
nossos modos de organização social.
É esta proximidade que mobiliza a crítica do jurista austríaco Hans Kelsen à
psicologia freudiana das massas. Em “O conceito de Estado e a psicologia social, com
especial referência à teoria da massa de Freud”, Kelsen se volta contra a possibilidade das
hipóteses fundamentais de Psicologia das massas e análise do eu valerem também para
sociedades democráticas insistindo, no seu caso, na irredutibilidade da norma jurídica à
crença ou amor por uma pessoa ou ideia personificada. Ao acreditar na relação fundamental
entre norma e fantasia, ou antes, ao operar como quem não é capaz de estabelecer
distinções entre norma e fantasia, Freud generalizaria indevidamente o comportamento das
massas e dos “grupos transitórios” fortemente dependentes de móbiles psicológicos para
todo e qualquer ordenamento jurídico possível. Freud não apenas indicaria a gênese das
ilusões substancialistas que afetam a representação da autoridade do Estado, mostrando
como tais ilusões significariam o retorno de uma mentalidade arcaica a ser combatida por
inviabilizar uma concepção democrática da vida política incapaz de sobreviver ao conflito
particularista das paixões. Neste sentido, a perspectiva freudiana não é eminentemente
crítica, o que para Kelsen seria bem-vindo. Ao contrário, ao insistir em compreender todo e
qualquer vínculo social a partir “dos processos de ligação e associação libidinal” em sua
multiplicidade empírica, ele pareceria expor a necessidade de tal ilusão tanto para a própria
sobrevida da soberania do Estado quanto para a legitimidade da ordem jurídica. De um
lado, Kelson dirá: “Freud, portanto, vê o Estado como uma mente de grupo”21, insistindo
que uma linha vermelha teria sido atravessada, já que o Estado, para o jurista austríaco
21 KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 323Não é um dos vários grupos transitórios de extensão e estrutura libidinal variáveis; é
a ideia diretora, que os indivíduos pertencentes aos grupos variáveis colocaram no
lugar de seu ideal de ego, para poderem, por meio dela, identificar-se uns com os
outros. As diferentes combinações ou grupos psíquicos que se formam quando da
realização de uma única ideia de Estado não incluem, de modo algum, todos os
indivíduos que, num sentido inteiramente diverso, pertencem ao Estado. A
concepção inteiramente jurídica do Estado só pode ser entendida na sua
conformidade jurídica específica, mas não psicologicamente, ao contrário dos
processos de ligação e associação libidinal, que são o objeto da psicologia social22.
Ou seja, a existência de uma concepção inteiramente jurídica exigiria uma
universalidade genérica que não pode ser assegurada se creio que todas as instituições
devem necessariamente encontrar seu fundamento em processos de identificação e
investimento libidinal, tal como quer Freud. Pois não haveria identificações universalmente
recorrentes, já que elas dependem das particularidades empíricas das relações familiares em
sua contextualidade especifica.
No entanto, é fato de que, para o psicanalista, a “concepção inteiramente jurídica do
Estado” da qual fala Kelsen seria simplesmente uma hipóstase que nos impediria de
compreender as dinâmicas próprias àquilo que poderíamos chamar de “estrutura
fantasmática da autoridade” em nossas sociedades, a saber, a maneira com que autoridade e
fantasia se articulam, o que nos levará diretamente à teoria do supereu, como veremos na
próxima aula.
Freud havia fornecido as bases filogenéticas da fantasia que estrutura nossa relação
ao lugar soberano do poder em Totem e tabu. Lá, Freud lembrava como tudo se passava
como se sujeitos agissem no interior das relações sociais tendo que carregar o peso da
culpabilidade e da melancolia produzida pelo assassinato de um pai primordial. Os sujeitos
se socializam, eles agem socialmente a partir da culpa e da melancolia. Culpa anterior a
qualquer ação, melancolia vinda do sentimento de perda de um objeto perdido vivida sob a
forma de reprimendas e auto-depreciação. Neste sentido, se Freud se vê obrigado a afirmar
o caráter filogenético de sua fantasia social do pai primevo, é por entender que os vínculos
à ordem jurídica procuram se legitimar através da reiteração retroativa de um modelo de
demanda de autoridade. Tais vínculos não se alimentam apenas da especificidade de
relações familiares, mas assentam-se em outros “aparelhos de estado” como a igreja ou o
exército, aparelhos mais gerais que incitam continuamente a certas formas de vínculos
libidinais. Com esta crítica, Freud recusa até mesmo a legitimidade de um ordenamento
jurídico para além do Estado, já que se trata de criticar o fundamento fantasmática da
autoridade. De fato, a esfera do direito da qual fala Kelsen exige uma espécie de
“purificação política dos afetos” através da defesa da validade ideal da norma que só pode
nos levar à crença na imunidade à problematização política do quadro jurídico com seu
22 Idem, p. 327. Não deixa de ser sintomático a proximidade entre a vertente formalista kelseniana e leituras
“republicanas” como a crítica a Freud sugerida por Bernard Baas: “O agrupamento do povo para o exercício
do poder soberano, ou seja, do poder de fazer leis às quais todos aceitam obedecer, é a ereção dos cidadãos
que formam o bando político republicano. É claramente a ideia republicana que é aqui objeto de amor
unificando os cidadãos em um mesmo corpo: mas se trata de um corpo sem cabeça, sem ‘chefe’ no sentido
freudiano do termo” (BAAS, Bernard; Y a-t-il de psychanalystes sans-culotte?, op. cit., p. 217)ordenamento e seus mecanismos previamente estabelecidos de revisão. a teoria freudiana
da psicologia das massas fornece uma crítica a tal positivismo jurídico.

Psicologias do fascismo Aula 1

Psicologias do fascismo
Aula 1
Goebbels chega a minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em
duas filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer
a saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o
braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se
assistisse a um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado.
Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis
palavras “Eu não desejo a sua saudação”. Daí vira-se e vai na direção da
porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha própria
fábrica, entre meus próprios trabalhadores, com o braço levantado.
Fisicamente, só posso ficar assim. Então fixo o olhar no pé torto de
Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma
posição até acordar 1 .
Este é o relato de um sonho de um pequeno industrial alemão em 1933,
ano da ascensão de Hitler à chancelaria. Um sonho no qual talvez se encontre
muito da realidade socio-econômica que seria a regra no país a partir de então.
Lá estava a figura do poder que reconstitui a sociedade a partir de novas
posições nas quais todos estão igualmente distantes do centro. O pequeno patrão
agora está ao lado de seus empregados, obrigado a fazer a saudação nazista
como todos. Mas há algo nos corpos que não se adestra muito bem. Os gestos são
feitos com esforço indescritível. Há algo nos corpos que sai de suas imagens
necessárias. O corpo de Goebbels é manco, o do pequeno patrão é exposto em
seu descontrole, em seu esforço para sustentar um gesto simples. “Eu não desejo
sua saudação” é o que diz o ministro da propaganda de Hitler. Esta é uma
maneira de dizer : “seus gestos são vazios, eles denunciam como falta-lhes o
sedimento da identificação”.
Neste sonho, toda uma dimensão libidinal de resistência e conflito
aparece. Por mais que o sujeito procure “fazer como”, há o corpo que resiste, há o
corpo que manca. Quando ele acordar e estiver na realidade socialmente
partilhada levantando o braço para fazer a saudação nazista, o sonho lhe
lembrará deste real. Ele lhe produzirá um sentimento de irrealidade que pode a
qualquer momento expo-lo em sua inverdade. O corpo lhe lembrará do caráter
real de seu próprio desejo e da irrealidade da vida social.
Uma abordagem psicológica de fenômenos sociais é desejável?
Começar com sonhos talvez seja uma maneira adequada de dar início a
um curso sobre o fascismo. Pois eles nos lembram não apenas como nossas
formações do inconsciente, nossos sintomas, angústias, desejos e fantasias são
expressões de dimensões fundamentais da vida social, como elas expressam
formas sociais de sofrimento e enraízam estruturas de resistência. Eles nos
lembram também como a verdade das dinâmicas imanentes a fenômenos sociais,
1
BERADT, Charlotte; Sonhos no Terceiro Reich, São Paulo: Três estrelas, p. 30como o fascismo, exige a mobilização de uma dimensão propriamente
“psicológica”, mesmo que este termo vá, no decorrer de nosso curso, perdendo
sua distinção específica, até o ponto em que talvez não tenhamos mais certeza do
que falamos quando falamos de “psicológico”, até o ponto em que cheguemos à
conclusão de que precisaremos, talvez, de abandonar tanto o termo quanto seus
opostos. Pois no interior deste trajeto todos os termos que utilizávamos para
falar de indivíduos e sociedade se demonstrarão atravessados por uma urgente
necessidade de modificação.
Por isto, gostaria de utilizar este primeira aula para abordar duas
questões prévias que pedem resposta antes de iniciarmos um curso cujo título é
“Psicologias do fascismo”. A primeira é de ordem epistemológica e poderia ser
enunciada na forma seguinte: “Qual a razão para se propor uma abordagem
psicológica do fascismo?”, até porque não é claro o que entendemos por
“abordagem psicológica” neste caso. A outra questão é simples apenas em
aparência, a saber, o que entendemos neste contexto por “fascismo”? Estamos a
falar de um fenômeno totalitário historicamente situado nos anos trinta do
século passado ou de uma latência sempre presente nas formas hegemônicas de
vida no interior das sociedades liberais que, por isto, pode emergir a qualquer
momento? Se o segundo caso for correto, então qual sua especificidade, em que
condições poderíamos falar, de maneira analítica, de fascismo?
Uma questão como a anterior, relativa à abordagem psicológica do
fascismo, apenas declina outra, de ordem mais geral, a saber: “Não estaríamos a
produzir um erro categorial primário ao mobilizarmos categorias psicológicas
para descrever fenômenos sociais?”. Pois pode parecer inicialmente que
estaríamos a propor alguma forma de reducionismo que ignoraria a
complexidade dos sistemas de interação entre as múltiplas esferas sociais de
valores em prol de descrições sociais baseadas na maneira com que sujeitos
individualizados mobilizam representações mentais, crenças, afetos, desejos a
fim de aderir a certos papéis e modos de reprodução material da vida. Como se,
ao final, as relações sociais pudessem ser descritas como desdobramentos de
uma situação ideal originária na qual encontraríamos, preferencialmente, duas
consciências interagindo em relações de autoridade e poder. Como se
estivéssemos a falar que a expressão institucional do Estado, por exemplo,
tivesse sempre a tendência a submeter-se à figura de uma pessoa singular na
posição de líder. Estratégia que implicaria em um estranho resquício de
categorias da filosofia da consciência transpostas para o quadro da análise da
lógica do poder.
Como se não bastasse tal dificuldade epistemológica, haveria ainda um
problema mais grave que se explicita quando procuramos reconstruir a gênese
do que se convencionou chamar de “psicologia das massas”, conjunto do qual as
análise psicológicas do fascismo fariam parte. O campo da psicologia das massas
nasce no final do século XIX no interior de uma conjunção explícita entre:
criminologia, reflexão sociológica sobre o impacto social dos processo de
urbanização na Europa, reflexão política sobre movimentos de massa, além de
considerações sobre a psicologia do desenvolvimento. Em solo francês, eixo
central para o campo do qual estamos a falar, o termo não será exatamente
“psychologie des masses”, mas “psychologie des foules”, cuja tradução mais
aproximada seria “psicologia das multidões”. Os principais textos são escritos em
um prazo de não mais de quinze anos: Psychologie des foules, de Gustave Le Bon éde 1895. Les lois de l’imitation, do magistrado francês Gabriel Tarde é de 1890,
seu L’opinion et la foule, de 1901. La folla delinquente, do jurista italiano Scipio
Sighele é de 1891. Por sua vez, Essai sur la psychologie des foules: considérations
médico-judiciaires sur les responsabilités collectives, do médico francês Henry
Fournial é de 1892. Depois, as discussões sobre psicologia das massas alcançarão
o mundo anglo-saxão principalmente com os trabalhos de Wilfred Trotter a
respeito do instinto gregário (de 1908) e de William McDougall, que em 1920
escreverá: The Group Mind: A sketch of the principles of collective psychology with
some attempt to apply them to the interpretation of national life and character. O
texto de Freud sobre a psicologia das massas e a análise do Eu é de 1921.
Conhecemos análises anteriores a respeito de fenômenos de massa, elas
estão lá nos textos de Edmund Burke, de Hyppolite Taine, de Charles Mackay e
de Jules Michelet, assim como nos romances de Zola, de Victor Hugo e
Maupassant. Mas esses livros sobre a psicologia das massas que descrevi
anteriormente explicitam uma perspectiva analítica nova. Eles procuram, cada
um a sua maneira, fazer das massas, da multidão, o objeto de uma ciência a parte
inteira, o que não era o caso anteriormente. Na verdade, uma ciência da
regressão social, das involuções que estariam a ameaçar as novas sociedades
capitalistas urbanas do século XIX. Assumindo uma noção bastante presente na
psicologia de então, que definia a doença mental como degenerescência, como
retorno a estágios arcaicos de maturação e desenvolvimento, esses trabalhos
(embora os trabalhos de Tarde sejam uma exceção a este caso) veem as massas
como o equivalente social de uma degenerescência patológica, propícia a
comportamentos criminosos, ao rebaixamento da inteligência e a reações
violentas e incontroláveis.
Por exemplo, em seu livro supracitado que certamente será o mais
influente desta corrente inicial da psicologia das massas, Le Bon começa
afirmando: “As massas sempre desempenharam um papel importante na
história, mas nunca tão considerável quanto atualmente. A ação inconsciente das
massas, substituindo a ação consciente dos indivíduos, representa uma das
características da idade atual” 2 . Pois não seria mais nos conselhos de príncipes,
mas na alma inconsciente das multidões (inconsciente compreendido neste
contexto como a dimensão do irracional, do primitivo) que se estaria a decidir o
destino das nações.
Isto só pode significar, diz Le Bon, “uma fase de desordem”, um período
de “anarquia confusa precedendo a eclosão de novas sociedades”, período
caracterizado pelo império de uma “potência unicamente destrutiva” 3
representada pelas massas. Le Bon chega a usar a ideia de hipnose para
caracterizar o pretenso caráter inconsciente do comportamento dos indivíduos
no interior da massa, para descrever como indivíduos modificariam
radicalmente seu comportamento quando parte da massa. Da mesma forma,
Gabriel Tarde irá descrever o homem social como um “verdadeiro sonâmbulo” 4 ,
como alguém em estado constante de hipnose, já que, em todos os três casos
(sonambulismo, hipnose, ação social) encontramos a ilusão de ter ideias
sugestionadas e acreditar tê-las espontaneamente.
LE BON, Psychologie des foules, préface
Idem, p. 14
4
TARDE; Les lois de l’imitation, p. 84
2
3Sendo assim, todo o livro de Le Bon é uma tentativa de compreender o
advento das massas enquanto ator político como uma regressão no sentido
psicológico do termo. Regressão a uma sociedade ingovernável, já que não seria
possível governar as massas. No máximo, o conhecimento de sua psicologia
permitiria não ser governado por elas. O esquema da degenerescência fica claro
quando Le Bon afirma ser tal mudança de comportamento resultante do fato de
que “nossos atos conscientes derivam de um substrato inconsciente formado
sobretudo por influências hereditárias (...) por trás das causas assumidas de
nossos atos, encontram-se causas sociais ignoradas por nós” 5 . Tais causas
resultantes de sedimentações que compõe “a alma de um povo” formariam um
inconsciente coletivo e arcaico responsável pela constituição da unidade mental
da massa. Daí a afirmação de que a psicologia das massas seria uma psicologia de
processos de regressão: “Pelo simples fato de fazer parte de uma massa, o
homem desce vários degraus na escada da civilização” 6 .
Se nos perguntarmos pelas condições históricas para o advento de tal
psicologia das massas, encontraremos uma velha conhecida que fará história
posteriormente:
Hoje, as reivindicações das multidões são cada vez mais claras e visam
destruir de cima abaixo a sociedade atual, para lhe levar a esse
comunismo primitivo que foi o estado normal de todos os grupos
humanos antes da aurora da civilização 7 .
O que não poderia ser diferente, já que as condições históricas para o
aparecimento de tal psicologia não é outra que as experiências revolucionárias
que sacudiram a França do século XIX, em especial a Comuna de Paris, de 1871,
com sua insubmissão das classes populares às representações de ordem e
autoridade. Isto explica um pouco da razão pela qual foi na França que a
psicologia das massas acabou por aparecer inicialmente. Foram três revoluções
populares em menos de um século (1789, 1848, 1871). Diante da subida à cena
da história de revoluções de massa nas quais a natureza do poder era contestada,
a psicologia será mobilizada para construir um discurso social com pretensões
científicas no qual o corpo social era apresentado como em risco de
degenerescência, como tais fenômenos seriam explosões patológicas de
irracionalidade.
Certamente, devido a sua origem claramente reativa aos processos
históricos de transformação social, a psicologia das massas acabaria por ser
relegada à condição de curiosidade histórica se ela não tivesse sido
completamente invertida por Sigmund Freud, em seu Psicologia das massas e
análise do eu, de 1921. Veremos com mais calma tal inversão no interior de nosso
curso, mas se nosso curso começa com Freud é por ele ter representado uma
espécie de novo começo para a abordagem psicológica dos fenômenos sociais.
Primeiramente, porque não se tratava mais de descrever as regressões que
ameaçariam do exterior a marcha do progresso própria ao processo de
racionalização das sociedades europeias do começo do século XX.
LE BON, idem, p. 22
idem, p. 24
7
Idem, p. 13
5
6O tamanho do passo dado por Freud pode ser compreendido se levarmos
em conta um ponto. Contrariamente à tendência geral da psicologia social da
época, que procurava distinguir a natureza da massa desorganizada e de grupos
organizados, isto a fim de demonstrar que a regressão do primeiro não
invalidava a racionalidade do segundo, Freud se serve exatamente de dois
grupos organizados paradigmáticos, a saber, a igreja e as forças armadas, para
descrever a natureza regressiva das massas. A distinção entre grupo e massa se
perde de forma deliberada. Pois Freud quer defender que grupos como a igreja e
as forças armadas demonstrariam, de maneira mais clara, o que só pode
aparecer nas massas espontâneas de maneira “mais camuflada”. Maneira de
afirmar que a psicologia das massas é, ao mesmo tempo, uma psicologia das
instituições, isto no sentido de uma psicologia da regressão imanente ao
funcionamento normal de nossas instituições, e não mais psicologia da regressão
que apareceria como desvio em relação ao bom funcionamento normal das
instituições democráticas. Daí virá uma das primeiras críticas feitas contra a
psicologia das massas de Freud, no caso, escrita pelo jurista Hans Kelsen 8 .
Notemos como este gesto freudiano consistia em mostrar como duas
instituições que aparecem como subsistemas inerentes a toda noção de
democracia liberal seriam a expressão mais evidente de núcleos de regressão
social no interior mesmo de nossas formas liberais de vida. No interior das
sociedades liberais, igreja e forças armadas não são a arché a ser superada por
um fortalecimento dos processos decisórios em instituições democrático
representativas, como se esperaria se assumíssemos a teses de um processo
weberiano de desencantamento do mundo e de um fortalecimento progressivo
da sociedade civil no interior do liberalismo. Na verdade, igreja e forças armadas
seriam nosso verdadeiro destino. Décadas depois, outro psicanalista, Jacques
Lacan, será ainda mais explícito ao dizer: “A religião triunfará não apenas sobre
a psicanálise , ela triunfará sobre muitas outras coisas. Não podemos sequer
imaginar como é potente, a religião” 9 .
Se, para Freud, a história da democracia no ocidente será uma história de
afastamentos malogrados em relação tanto ao núcleo teológico-político do poder
quanto a suas figuras fortemente hierárquicas e militarizadas, se esses núcleos e
figuras conhecerão retornos periódicos e constantes em lugares e momentos que
menos se espera, é porque nunca de fato teríamos conseguido abandonar uma
concepção teológico-política de poder (a secularização de nossas sociedades é
um projeto bloqueado), nem nunca de fato teríamos nos livrados de uma
realidade social cuja matriz fundamental de relação é a guerra, para ser mais
preciso, a guerra civil (nossos Estados continuam sendo profundamente
militares). É desta forma que, a partir de Freud, a psicologia das massas deixará
de ser uma aplicação da noção clínica de doença como degenerescência tendo em
vista dar conta de fenômenos sociais que colocariam em risco o horizonte de
racionalidade da democracia liberal. Ela se tornará então a análise das latências
de regressão imanentes a tal racionalidade.
É neste ponto que o sentido de uma abordagem psicológico de fenômenos
sociais pode se fazer sentir. Pois para Freud é claro que se nunca nos livramos do
núcleo teológico-político do poder nem da guerra como paradigma central das
8
9
Ela está em KELSEN, Hans; A democracia, São Paulo: Martins Fontes, 2002
LACAN, Jacques; Le triomphe de la religion, Paris, Seuil, p. 78relações sociais é porque a maneira com que os indivíduos modernos são
constituídos, seus desejos socializados, a maneira com que os processos de
individuação se realizam perpetuariam modos de relação social fundados em
fantasmas de autoridade cujos modelos historicamente constituídos são próprios
ao amparo produzido pelo poder pastoral e pela submissão à soberania do líder
da guerra. Ou seja, a individualidade moderna não seria exatamente o esteio de
uma forma democrática de vida baseada na cooperação imanente e no respeito à
integridade da pessoa. Ela seria a porta aberta a todas as formas de regressão
social. E não será por acaso que comportamentos xenófobos, racistas e violentos
não virão necessariamente dos integrantes de famílias em decomposição, povos
submetidos a crises profundas e submetidos a autoridade em degradação, mas
também de famílias aparentemente sólidas, países aparentemente prósperos. A
teoria freudiana deve ser vista pois como um momento fundamental de auto-
crítica da modernidade e isto ficará muito claro quando a Escola de Frankfurt se
voltar a ele para analisar o fascismo.
Mas voltemos a nossa questão epistemológica inicial, esta que dizia
respeito à adequação de propor uma análise psicológica de fenômenos sociais. O
que vemos aqui é como não seria possível compreender fenômenos sociais, seus
modos de criação de adesão, as modalidades de produção de corpos sociais, sem
levarmos em conta a mobilização de fantasmas, de afetos e representações que
não são individuais, mas profundamente sociais. Pois este é um dos maiores
equívocos vinculados ao que chamamos normalmente de vida psíquica, a saber,
acreditar que fantasmas, crenças e desejos são individuais. Lembremos do que
diz Freud:
A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas,
que à primeira vista pode parecer muito significativa, perde boa parte de
sua agudeza se a examinarmos mais detidamente. É certo que a psicologia
individual se dirige ao ser humano particular, investigando os caminhos
pelos quais ele busca obter a satisfação de seus impulsos instintuais, mas
ela raramente, apenas em condições excepcionais, pode abstrair das
relações deste ser particular com os outros indivíduos. Na vida psíquica
do ser individual, o Outro é via de regra considerado enquanto modelo,
objeto, auxiliador e adversário, e portanto a psicologia individual é
também, desde o início, psicologia social, num sentido ampliado mas
inteiramente justificado 10 .
Em uma afirmação desta natureza, fica evidente quão pouco clara são
noções como “ser humano particular”, como se estivéssemos a falar de algo
dotado de realidade ontológica. Se pensamos o ser humano no interior de
relações de desejo, é impossível abstrair o fato de sermos obrigados a descrever
estruturas sociais de relação. Na verdade, fantasmas, afetos, crenças e desejos
são modos de participação social. Podemos mesmo dizer, não são indivíduos que
desejam, mas a sociedade deseja através dos indivíduos. Não são indivíduos que
produzem fantasias, mas a sociedade produz fantasias através dos indivíduos. É
a história dos desejos desejados antes de mim, como disse uma vez Alexandre
Kojève, que se manifesta nos desejos que julgo meus, nos fantasmas que julgo
10
FREUD, Sigmund; Psicologia das massas e análise do Eu, São Paulo: Companhia das Lestras, p. 14meus. Neles, encontram-se tanto a constelação familiar quanto a história dos
povos, das raças, as figuras de sua literatura, assim como do que se recusou a se
constituir como família, como povo, como raça.
O que é fascismo?
O texto de Freud é de 1921 e seu horizonte histórico é profundamente marcado
pela primeira guerra civil europeia que passou para a história como a Primeira
Guerra Mundial. Ou seja, seu objeto não poderia ser o que aparecerá anos depois
como fascismo. Mas com a ascensão do nazismo em janeiro de 1933 foram
publicados, no mesmo ano, dois textos propondo uma análise psicológica do
fascismo a partir do quadro compreensivo derivado do proposto por Freud. São
eles : A estrutura psicológica do fascismo, de Georges Bataille, e A psicologia de
massa do fascismo, de Wilhelm Reich. Esses dois textos, escritos por autores que
não se conheciam e vindos de tradições distintas, irão inaugurar uma longa série
de trabalhos que procurarão utilizar conceitos clínicos para dar conta tanto do
fascismo como de seus mecanismos imanentes, como o anti-semitismo (muito
mais presente no nazismo alemão do que no fascismo italiano), o totalitarismo, a
concepção orgânica do corpo social com sua forma de vínculo ao território, o
nacionalismo militarista, a concepção imunitária de identidade.
Dois aspectos saltam imediatamente aos olhos na comparação entre esses
dois textos. O primeiro consiste em perceber como eles procuram fornecer uma
teoria libidinal da regressão social. Ou seja, eles procuram defender a tese de que
fenômenos como o fascismo não podem ser explicados se não levamos em conta
a economia libidinal que lhe seria própria. Ele não seria um fenômeno de classe,
de raça, de nação, mas uma estrutura libidinal que poderia se fazer sentir em
qualquer lugar e momento. Para sermos claros, o que esses textos afirmam é a
existência de algo como um regime fascista do desejo que deveria ser o
verdadeiro alvo de uma ação política.
Este teoria da estrutura libidinal do fascismo, no entanto, não procurará
descreve-lo como alguma espécie de expressão política do retorno a estruturas
arcaicas de comportamento, um pouco como vimos Le Bon a falar da emergência
das massas no campo político. Alguém como Reich, por exemplo, insistirá que
longe da ressurgência de comportamentos arcaicos, estaríamos diante do
resultado final de um trabalho de civilização que confunde socialização e
repressão pulsional. Pois até agora não houve processo civilizacional que não se
constituiu sobre os escombros das pulsões sexuais, tema também caro a Bataille.
Daí porque é importante lembrar como: “a estruturação autoritária do homem se
produz em primeiro lugar através da ancoragem de inibições e de angústias
sexuais na matéria viva das pulsões sexuais” 11 . Ou seja, tudo se passa como se
eles estivessem a dizer que não é falta de civilização que produz o fascismo, mas
civilização em sua função repressiva bem sucedida e em sua capacidade de
produção de satisfações substitutas à sexualidade reprimida.
Mas essas teorias não funcionarão simplesmente como a figura do que
Foucault chamará décadas depois de “a hipótese repressiva”. Pois elas lembrarão
como o fascismo será incompreensível a partir da hipótese de um regime
repressivo “lei e ordem”. Antes, ele é a mobilização contínua e simultânea da
11
REICH, Wilhelm; La psychologie de masse du fascisme, Paris: Payot, p. 75transgressão e da repressão. Ele é a articulação entre a suspensão da lei e o culto
da lei. É que visa Reich ao afirmar: “O fascismo não é, como se tende a acreditar,
um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama
de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários” 12 . Bataille dirá
algo semelhante quando afirmar, sobre o fascismo: “a revolução afirmada como
um fundamento é ao mesmo tempo fundamentalmente negada desde a
dominação interna exercida militarmente por milícias” 13 . Há a emergência do que
Bataille chama de “heterogeneidade”, há a recusa da homogeneidade da
sociedade utilitária da produção pulsando no interior do fascismo. Mesmo o
vínculo a autoridade fascista será caracterizado por uma incondicionalidade que
se coloca para além de todo julgamento utilitário.
Desta forma, tanto Reich quanto Bataille assumem a proposição política
de que o fascismo só pode crescer em situações pré-revolucionárias. De certa
forma, ele é a figura maior do que poderíamos chamar de uma contrarrevolução
preventiva que se faz passar por revolução, e este “se fazer passar por” é o ponto
decisivo aqui. Pois esta é uma forma desses autores afirmarem que o ponto
analítico fundamental passa por compreender por que, em dado momento,
setores majoritários da população desejaram o fascismo. Pois uma teoria que
eleva o desejo a estrutura fundamental dos laços sociais precisará responder
sobre como é possível desejar o fascismo, ela precisará procurar nele os traços
conjugados de revolta contra a opressão social e reforço da opressão.
No que, paradoxalmente, nos encontramos em um terreno clássico para a
filosofia política, ao menos desde Etienne de La Boétie. Pois se o Discurso sobre a
servidão voluntária, de 1553, pode ser visto como o texto inaugural da literatura
política moderna é por ele aparecer como o primeiro a colocar o problema da
servidão a partir dos termos de sua aquiescência. Por que em certos momentos
se deseja a servidão, por que em certos momentos se deseja esse processo de
concentração radical da soberania na mão de um? Não se trata de descrever a
servidão a partir da submissão à força, mas a partir da sua associação à voluntas,
de um querer e participar à sua própria servidão, e este é o ponto fundamental:
Gostaria apenas de entender como é possível que tantas pessoas, tantas
aldeias, tantas cidades e tantas nações suportem por vezes um único
tirano, que tem o poder que elas mesmas lhe dão; cujo poder de
prejudicá-las é o poder que elas mesmas aceitam, que só sabe fazer-lhes
algum mal porque elas próprias preferem padecer deste mal a
contradizer o tirano 14 .
O segredo será pensar as modalidades através das quais os sujeitos
participam de sua própria servidão, como eles serão, ao mesmo tempo, a vítima e
o carrasco. Quando em 1971, Deleuze e Guattari se voltarem ao problema da
estrutura libidinal do fascismo, eles não deixarão de lembrar do tipo de
estratégia outrora colocada em circulação novamente por Reich:
Idem, p. 17
BATAILLE, Georges; La structure psychologique du fascisme, In: Oeuvres complètes vol. I, Paris:
Galllimard, p. 362
14
LA BOËTIE, Etienne; Discurso da servidão voluntária, São Paulo: Nós, 2016, p. 16
12
13Pois como disse Reich, o surpreendente não é que pessoas roubem, que
outros façam greve, mas sim que os famintos não roubem sempre, que os
explorados não façam greve sempre: por que os homens suportam desde
séculos a exploração, a humilhação, a escravidão, ao ponto não apenas de
quere-las para os outros, mas para si mesmos? (...) Não, as massas não
foram enganadas, elas desejaram o fascismo em tal momento, em tal
circunstância, e é isto que se faz necessário compreender 15 .
A resposta de Reich e Bataille passará por insistir que categorias como
opressão, repressão, ameaça não bastam, embora não se trate de ignorar a
presença dos fenômenos que elas descrevem. Há certa liberação que o fascismo
realiza, há certa revolta que ele libera e não será possível compreender sua força
sem analisar sua produção. Entender a natureza dessa produção será um dos
desafios mais complexos.
Quando décadas depois Deleuze e Guattari retornarem aos problemas
internos às psicologias do fascismo e às formas de paralisia à emancipação social,
após a consciência da paralisia das forças de transformação produzidas a partir
de maio de 68, quando eles retornarem em uma via que procura explicitamente
recuperar pontos importantes do pensamento de Reich, eles claramente verão
como estratégia política maior mobilizar a crítica em duas direções: uma macro-
política e outra micro-política. Se a primeira se refere as grandes estruturas
normalmente binárias e biunívocas de representação, suas classes, partidos, seus
objetos e instituições que tendem a convergir na figura do Estado e de uma
política dirigida para o Estado (molares), a segunda se refere à lateralidade dos
fluxos libidinais que estabelecem relações e processos de transformação para
além dos lugares socialmente codificados e determinados pelas estruturas
sociais (molecular). Da mesma forma, pode haver um macro-fascismo e um
micro-fascismo. Daí afirmações como: “é muito fácil ser anti-fascista no nível
molar, sem ver o fascista que se é si-mesmo, que se conversa e alimenta, que se
autocompraz com as moléculas, pessoais e coletivas” 16 . E é nesta dimensão
micro-fascista que podemos encontrar uma resposta à questão: por que se deseja
sua própria repressão? É ela que prepara a consolidação de uma política estatal
fascista e que aparece como condição para sua emergência.
Dentre as múltiplas questões que a abordagem de Deleuze e Guattari
produzirá, uma chamará em especial nossa atenção. Ela se refere à utilização do
conceito de pulsão de morte para descrever o modelo de movimento em direção
à catástrofe que seria imanente ao fascismo. Essa realização da catástrofe, como
se uma máquina de guerra descontrolada tivesse se apropriado do Estado,
criando não exatamente um Estado totalitário, mas um Estado suicidário (para
falar com Paul Virilio), uma tanatopolítica que é uma necropolítica a se voltar
contra si mesma, levará os dois a afirmarem:
Há no fascismo um niilismo realizado. É que, a diferença do Estado
Totalitário que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o
fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma
em linha de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início,
15
16
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix: L’anti-Oedipe, Paris: Seuil, 1972, p. 37
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix; Mil Plateaux, Paris: Seuil, p. 262os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as
núpcias e a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães (...)
Uma máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que
preferia abolir seus próprios servos a parar a destruição 17 .
Nós veremos com calma o sentido desse recurso à pulsão de morte como
fundamento de um desejo social de catástrofe, como fundamento de uma
experiência de purificação, de um movimento sem telos que só pode se realizar
na sua própria aniquilação.
Frankfurt contra o fascismo
Outra vertente que se apoiará nos trabalhos de Freud para desenvolver
uma reflexão de larga escala sobre a psicologia do fascismo será a Escola de
Frankfurt. Desde os estudos pioneiros de Erich Fromm sobre a adesão do
operariado alemão ao nazismo a partir da análise das articulações entre
“impulsos emocionais do indivíduo e suas opiniões políticas” 18 , os
frankfurtianos tomaram para si a tarefa de utilizar o quadro psicanalítico para
compreender as formas sensíveis de sujeição social. Fromm procurava, para
além da expressão explícita do engajamento político, compreender e tipificar as
estruturas motivacionais e emocionais que sustentavam tais decisões. Sua
compreensão visava lançar luz sobre as contradições imanentes entre
comportamentos públicos e representações psíquicas, o que poderia explicar o
sistema de modificações bruscas das posições políticas da classe operária,
como a deserção do comunismo em direção ao nazismo.
Principalmente a partir dos anos quarenta, os frankfurtianos farão
diversos estudos sobre o anti-semitismo, sobre a formação do estado nazista
(Behemoth, de Franz Neumann), sobre a antecipação do nazismo no interior da
cultura alemã (De Calegari a Hitler e O ornamento da massa, de Sigfried
Kracauer), sobre as estruturas da propaganda fascista e de extrema direita (A
técnica psicológica de Martin Luther Thomas, de Adorno; Profetas do engano,
de Löwenthal e Guterman), sobre a economia nazista (Sobre o nacional-
socialismo: uma nova ordem?, de Friedrich Pollock), sobre a personalidade
autoritária (Estudos sobre a personalidade autoritária, de Adorno e o grupo de
Berkeley). Em suma, não seria possível menosprezar o tamanho do impacto do
nazismo no interior da trajetória da primeira geração da Escola de Frankfurt e
da maneira com que boa parte de suas figuras moldarão sua compreensão das
próprias sociedades de democracia liberal.
Mas será na Dialética do Esclarecimento, em especial em seu capítulo
intitulado “Elementos de anti-semitismo”, que encontraremos pela primeira vez
de forma sistemática a descrição do fascismo como uma patologia social.
Adorno e Horkheimer se servirão do quadro clínico da paranoia para dar conta
17
Idem, p. 280
FROMM, Erich. Arbeiter und Angestelle am Vorabend des Dritten Reiches, Stuttgart:
Deutsche Verlags-Anstalt, 1980. p. 110. Para uma discussão sobre as primeiras colaborações
de Erich Fromm ao Instituto de Pesquisas Sociais, ver: JAY, Martin. The Dialectical
Imagination. Berkely: California University Press, 1996.
18da natureza dos vínculos sociais no fascismo, assim como das tendências de
segregação inerentes às democracias ocidentais. Assim, ao aproximar o fascismo
e outras formas de autoritarismo da paranoia, Adorno e Horkheimer estavam a
dizer que a paranoia seria o modo hegemônico de participação social no interior
de tais sociedades. O que implicava afirmar que, nestes casos, os vínculos sociais
se sustentariam a partir da generalização da paranoia como tipo social, mesmo
que os sujeitos, do ponto de vista de suas patologias individuais, tivessem outra
forma de organização de seus sintomas. Neste sentido, não teríamos apenas uma
analogia, mas a descrição de uma modalidade de funcionamento social a partir
de gestão do sofrimento através da elevação de comportamentos patológicos a
forma de participação social. Como condição de participação, os sujeitos
deveriam agir como paranoicos. Um “agir como” que não deixará de ter
implicações na própria estrutura da personalidade subjetiva. Ao pensar na
paranoia, Adorno e Horkheimer falam de um funcionamento específico das
relações de identidade e alteridade, das fantasias de imunização, de contágio, de
perseguição e de grandeza. Na verdade, é a configuração do corpo social que será
compreendida como paranoica. O fascismo como um corpo social paranoico.
Veremos como o conceito psicanalítico de paranoia, base do uso dos
frankfurtianos, a aproximava de uma patologia que colocava, à céu aberto, os
mecanismos de identificação e introjeção próprios do narcisismo que, por sua
vez, eram a expressão de dinâmicas próprias à constituição mesma do Eu do
indivíduo moderno com seus desconhecimentos e denegações. Freud insistira
claramente, por exemplo, que o narcisismo era uma fase necessária do
desenvolvimento individual e que seu mecanismo expunha dinâmicas próprias
da paranoia e da melancolia. Neste ponto, encontramos uma radicalização desta
perspectiva em Lacan e em sua maneira de mostrar como a própria constituição
“normal” do Eu moderno era paranoica, pois produtora de uma instância
psíquica que organizava suas relações ao mundo através de projeções,
introjeções e fundava sua identidade a partir de um sistema de denegações e
agressividades 19 .
Neste sentido, era impossível colocar em circulação uma crítica que eleva
a paranoia à condição de patologia social sem defender que o indivíduo moderno
não era o esteio da vida democrática, mas a ferida aberta que coloca o corpo
social em risco perpétuo de deriva autoritária. Como se ao capitalismo restasse
fornecer regressões paranoicas periódicas aos sujeitos que ele socializa e produz.
Isto pode nos explicar porque a reflexão dos frankfurtianos não se serve do
fortalecimento do indivíduo moderno como contraponto à natureza paranoica
dos vínculos sociais, como seria o caso em uma perspectiva liberal. Na verdade,
os dois conceitos tecem relações profundas de solidariedade. Isto explicará
porque, nos anos 50, ao analisar a estrutura do que conhecemos por
“personalidade autoritária”, os frankfurtianos desenvolverão estudos extensivos
aos modos gerais de regressão presentes também nas sociedades liberais.
Tudo isto visa mostrar a vocês, como deve ter ficado claro, as razões pelas
quais trabalharemos neste curso com a hipótese de que “fascismo” não deve ser
utilizado apenas para descrever a experiência histórica que terá lugar na
Alemanha e na Itália anterior a Segunda Grande Guerra. Ele explicita uma
convergência de práticas e discursos que persegue nossas sociedades como uma
19
Ver, por exemplo, LACAN, Jacques; Séminaire II, Paris: Seuil, 1982sombra e que se atualiza nas condições as mais diversas. Mas a titulo
operacional, essa sombra poderia ser descrita a partir de quatro vetores.
Gostaria que vocês tivessem isto em mente durante todo nosso curso.
Quatro elementos definem a forma de vida fascista e suas patologias.
Primeiro, o culto da violência. Pois se faz necessário acreditar que a impotência
da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força
individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada
da violência. O fascismo oferece uma certa forma de liberdade, ele sempre se
construiu a partir da vampirização da revolta. Há uma anarquia bruta, um
carnaval sempre liberado pelo fascismo. Mas no seu caso, a liberdade se
transforma na liberação da violência por aqueles que já não aguentam mais
serem violentados. O carnaval não é aqui a reversão da ordem, mas a conjugação
entre a ordem e a desordem: a desordem travestida com a fantasia da ordem.
Segundo, não há fascismo sem ressurreição dos Estados-nação em sua
versão paranoica. Pois alguém tem que cuidar das nossas fronteiras, que são
completamente porosas. Alguém tem que ensinar Educação Moral e Cívica para
nossas crianças a fim de que elas têm orgulho desta pátria construída através do
genocídio dos índios e da escravidão dos negros. Alguém tem que impedir que
sejamos invadidos por mais uma leva de refugiados que vem para cá com seus
crimes. O Estado-nação se mostra como o último refúgio do que é meu, do que
me é próprio. É o meu território, o meu país, a minha língua, os meus costumes, a
minha miséria, a minha violência, o meu sufocamento. A comunidade nacional é
o avesso do comum. Ela é apenas a figura alargada de uma propriedade que
aparece como a expressão básica do medo como afeto político central.
Terceiro, o fascismo sempre será solidário da insensibilidade absoluta em
relação à violência com classes vulneráveis e historicamente marcadas pela
opressão. Ele é a implosão da possibilidade de solidariedade genérica. Essa
insensibilidade expressa o desejo inconfesso de que as estruturas de visibilidade
da vida social não sejam transformadas. Pois toda política é uma questão de
circuito de afetos e de estruturas de visibilidade. Trata-se de definir o que pode
nos afetar, com qual intensidade, através de qual velocidade. Para tanto, há de se
gerir a gramática do visível, a forma com que as existências são reconhecidas. Na
vida social, ser reconhecido é existir, o que não reconhecido não existe. Mas ser
reconhecido não significa apenas uma recognição do que já existia. Todo
reconhecimento é implicativo, ele exige que aquele que reconhece mude
também, pois habitará um mundo agora com corpos que antes não o afetavam, e
isto é o que aparece para alguns como insuportável.
Por fim, o fascismo sempre será baseado na deposição da força popular
em prol de uma liderança fora da lei. Ele é a colonização do desejo anti-
institucional pela própria ordem. O desejo anti-institucional, quando realmente
liberado, pode criar poderes que voltam às mãos do povo, democracias que
abandonam a representação para transferir a deliberação e a gestão para a
imanência do povo. Mas o fascismo faz dessa anti-institucionalidade um clamor
pela mão forte do governo expresso em uma liderança que parece estar acima da
lei, que parece poder falar o que quiser sem culpa, expor seus piores sentimentos
sem preocupação com seus efeitos, demonstrar seu desejo mais baixo de
violência como expressão de uma liberdade conquistada.
Por isso, é necessário que tais líderes pareçam cômicos, sejam uma
mistura de militar e palhaço de circo. Pois só assim, através dessa ironização, taisproposições poderão circular com fricção baixa. Afinal, não é para levar a sério
tudo o que eles dizem. Mas quem sabe o que se deve então levar exatamente a
sério? O que é real e o que é apenas bravata? Ninguém sabe, a não ser eles
mesmos. Isto se chama: misturar a ordem e a desordem, a lei e a anomia. Isto é
fascismo. Dito isto, que cada use sua capacidade de análise para saber em que
situações atuais esta descrição encaixa.